'Como Pedra': vontade de Deus e a fé como esperança ou maldição
"Essa é a vontade de Deus... Deus me mostrou sua vontade", diz o suposto portador da palavra divina num momento de "Como Pedra".
Diante de certa resistência, o pregador segue com seu discurso:
"Você está questionando Deus? Hein? Me diga? Está questionando a vontade de Deus?... A vontade de Deus nem sempre faz sentido para nós. Porque Deus é um raciocínio superior a todos os raciocínios. Deus não vive para satisfazer nossos egoísmos e desejos. Mas Deus sempre age com justiça e sabedoria".
São palavras que mexem de formas distintas com o casal que vive em algum meio do sertão nordestino. Faz tempo que buscam por respostas. Encontram apenas novas formas de desamparo desde que a filha ficou silenciada e presa à cadeira de rodas.
Esperanças fugidias batem à porta da casa paupérrima. Os doutores não encontram pistas de caminhos para seguir nem respostas que satisfaçam o homem e a mulher atormentados pela condição da garota. O Estado em quem deveriam confiar mais desassisti do que estende a mão.
Ao passar pelas páginas de "Como Pedra", de Luckas Iohanathan (Comix Zone), nos lembramos de grandes nomes que também levaram a poeira do sertão para os livros: Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto... Uma HQ de poucas cores: o preto, o branco, um laranja amarronzado com a cara do chão de terra batida, do tijolo aparente, do barro.
É um universo feito de olhares, expressões bem construídas pelo artista e silêncios rompidos, quando muito, por diálogos truncados. Quem domina a oratória parece ter o poder de decidir pelo rumo da vida que rareia conforme a seca avança e a fome atormenta. Nesse contexto, um filho ausente ressurge mais como maldição do que como benção.
Não se trata de um olhar original para o sertão, mas é uma interpretação que merece a atenção não só de leitores de quadrinhos.
Como também uma das principais metáforas utilizadas — a do pássaro que se debate contra a gaiola — passa longe de ser original, mas dá conta de transmitir o aprisionamento que não se restringe à menina emudecida em sua cadeira de rodas.
Todos naquela casa, cada um com sua angústia, debatem-se contra um futuro sem horizontes razoáveis. A árida realidade se impõe de forma cruel e muitas vezes incompreensível. De onde viriam tantas adversidades, tantas aflições, tamanhas provações?
Está aí um bom solo para que alguém semeie delírios e soluções miraculosas. Convicções a respeito de um mundo mágico regido por alguma entidade extraterrena capciosa, capaz de mover ventos, despejar chuvas, decidir quem morre e quem vive. Armadilhas e ilusões da fé, sobretudo quando manipulada por homens de índole duvidosa, é uma camada de destaque em "Como Pedra".
Nesse ponto, o drama sertanejo retratado na HQ se torna um símbolo mais amplo da delicada e tantas vezes perigosa procura por alento, respostas e uma nesga de esperança em meio a um mundo de abandonos.
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