Boom: O que revelam as cartas trocadas por Gabo, Llosa, Fuentes e Cortázar?
"O futuro do romance está na América Latina, onde tudo está por ser dito, por ser nomeado, e onde, por sorte, a literatura surge de uma necessidade, não de um esquema comercial ou de uma imposição política, como muitas vezes acontece em outras partes".
Era 1964 e o mexicano Carlos Fuentes havia finalizado a leitura de "A Cidade e os Cachorros", de Mario Vargas Llosa, quando escreveu essas palavras para o peruano. Nos anos seguintes a produção literária latino-americana ganhou força e se espalhou pelo mundo. O futuro do romance realmente estava na América Latina - acompanhado, sim, de paixões políticas e arranjos comerciais.
Esse olhar de Fuentes está numa das centenas de correspondências que compõem "Las Cartas del Boom", publicado no ano passado pela Alfaguara e ainda inédito no Brasil (editoras, corrijam isso logo, por favor). É um livro tão superlativo quanto os grandes clássicos produzidos pelos quatro autores que têm suas missivas reunidas ao longo de mais de 500 páginas.
Quarteto
Além de Llosa e Fuentes, estão ali o argentino Julio Cortázar e o colombiano Gabriel García Márquez. Foram escolhidos por formarem um quarteto responsável por romances totalizantes. Também foram lidos e reconhecidos mundo afora, além de manterem uma sólida amizade e compartilharem visão política semelhante (pelo menos durante algum tempo).
São cartas trocadas principalmente entre 1959 e 1975. Nelas acompanhamos quatro nomes hoje centrais, dois deles vencedores do Nobel de Literatura, dividindo suas dúvidas, preocupações, angústias financeiras e incertezas sobre os próprios escritos.
Entre conversas sobre a vida íntima e mesuras típicas do gênero, notamos a construção das amizades, os gestos de camaradagem e as articulações para conquistarem espaços em lugares estratégicos, como Paris, Barcelona e Nova York. Também vemos como esses autores se liam. Para Fuentes, "O Jogo da Amarelinha é o romance latino-americano que definitivamente enterra nosso provincianismo".
'Cem Anos de Solidão'
Em uma carta a Cortázar, o mexicano também divide suas primeiras impressões sobre uma novidade de Gabo que começava a ganhar atenção dos leitores. "Acabo de ler 'Cem Anos de Solidão' e sinto que passei por uma das experiências literárias mais profundas que recordo... Tenho a impressão de ter lido algo como um 'Dom Quixote' latino-americano".
Com a guarda baixa, sem se preocupar tanto com o estilo do texto, o tom empregado por cada um dos escritores na hora de redigir as correspondências merece ser observado. Gabo não dispensava os palavrões: "Essa literatura é uma merda: te abandona cinco anos e depois te atropela".
Cortázar, por sua vez, desconfiava de intelectuais que andam (e pensam) em bando: "A história da literatura mostra que a maneira mais segura de se desunir é se agrupar". É um cuidado manifestado pelo argentino em diversas cartas.
Devemos muito a Carlos Fuentes, autor de "A Morte de Artemio Cruz", a existência de "Las Cartas del Boom". Temos esse enorme registro de um momento fundamental da história literária graças à preocupação do mexicano em guardar tanto as cartas que recebia quanto a cópia das enviadas. Llosa só guardou as que recebeu, enquanto Gabo e Cortázar foram mais relaxados, deixaram cartas meio que ao acaso em seus arquivos.
Política
Impossível ser diferente, a política é um dos assuntos mais presentes nas correspondências. Indissociável da Revolução Cubana e da forma como o mundo voltou o olhar para a América Latina, o Boom foi marcado pelo engajamento de seus principais nomes. São nítidos os estranhamentos, as dissidências, as rusgas e a derrocada de certas amizades conforme a leitura avança - sim, falo do afastamento de Llosa.
Também são quatro os responsáveis pelo admirável trabalho de organização de "Las Cartas del Boom": Carlos Aguirre, Gerald Martin, Javier Munguía e Augusto Wong Campos. Na introdução eles escrevem:
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Quero receber"Se os revolucionários cubanos pretendiam reescrever a história latino-americana, a mesma ambição impulsionava a literatura dos escritores do Boom... Não é nenhuma coincidência que o ocaso do Boom surgira no horizonte ao mesmo tempo que as posturas dos quatro a respeito da Revolução Cubana se modificavam até se converter, em alguns casos, em irreconciliáveis".
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