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Quando uma parte importante da história nubla nossa visão sobre alguém

Em alguns casos, o peso de um dado biográfico aliado à centralidade de uma obra na carreira de um artista faz com que seja difícil pensarmos nessa pessoa sem que imediatamente lembremos de tal trabalho e de tal momento de sua vida. Escrevo isso tendo em mente o italiano Primo Levi.

Levi é o autor de um dos livros mais duros do século 20. Em "É Isto um Homem?" (Rocco, tradução de Luigi Del Re), oferece aos leitores um relato incrédulo e desesperançado do que ele, um judeu, passou nos campos de concentração durante o regime nazista. É daquelas obras que permanecem na memória e voltam para nos assombrar de tempos em tempos.

Uma informação crucial para que sobrevivesse ao extermínio costuma ser resgatada quando falamos de Levi. Ele era químico e seus conhecimentos nessa área o transformaram num prisioneiro útil durante os trabalhos forçados. Manusear substâncias que lhe corroíam as carnes nos laboratórios nazistas aumentou a chance de sobreviver ao inferno.

Há cinco anos, quando a Todavia lançou a coletânea "Mil Sóis" (tradução e organização de Maurício Santana Dias), o lado poeta de Levi foi celebrado por aqui. Outros de seus livros permanecem à disposição dos leitores brasileiros. "Os Afogados e os Sobreviventes" saiu pela Paz & Terra (tradução de Luiz Sérgio Henriques), por exemplo, enquanto "A Trégua" está editado pela Companhia das Letras (tradução de Marcos Lucchesi).

Penso nesse sujeito mais complexo, que não se resume a um químico judeu sobrevivente de Auschwitz e autor de "É Isto um Homem?", após ler "Uma Estrela Tranquila - Retrato Sentimental de Primo Levi" (WMF Martins Fontes, tradução de Michele de Aguiar Vartuli).

Trata-se de uma mescla de mergulho histórico e peregrinação pessoal do jornalista e quadrinista Pietro Scarnera em busca de vestígios de Levi. Nessa investigação, Scarnera entrega ao leitor um relato da vida profissional e pública do italiano baseado nos livros escritos e nas entrevistas concedidas pelo seu personagem.

Não ter sucumbido ao horror para depois escrever um título fundamental pesava sobre o próprio escritor. Prova disso: em 1966 o seu "Histórias Naturais" saiu sob o pseudônimo Damiano Malbaila. Não faria sentido, imaginava Levi, seu nome estampar tanto livros sobre o holocausto quanto histórias de ficção científica.

Ou ficção biológica, como o amigo Italo Calvino, outro grande da literatura, definiu numa troca de cartas. Scarnera é bem-sucedido a, aos poucos, apresentar um homem que vai além do sobrevivente. Um Levi com outros interesses literários a transitar entre escritores e editores. Alguém que traduz Kafka enquanto lida com novos desafios laboratoriais de sua primeira carreira.

"Acima de tudo, Levi me parecia extremamente familiar. Talvez porque nossa cidade natal fosse a mesma (Turim), talvez porque seus relatos me lembrassem muitíssimo os do meu avô: ele também havia sido prisioneiro na Alemanha (mas como soldado italiano) e também se tornara um narrador depois daquela experiência. O que me fascinava em Levi era exatamente isto: a história de como ele se tornara um escritor, sua necessidade de contar", escreve Scarnera no posfácio de seu livro.

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Levi deu cabo de sua vida em abril de 1987. Até hoje ninguém sabe ao certo - ou isso não se tornou público - o que motivou o suicídio. Apesar de ser uma figura pública, o escritor buscou manter a vida íntima longe de qualquer holofote. Desprezar fofocas ou lendas urbanas e respeitar essas escolhas de Primo Levi é outra virtude do trabalho de Scarnera em "Uma Estrela Tranquila".

Errata em 31 de maio, às 12h: diferente do informado antes, Daniel Trench fez a capa, não a tradução de "Mil Sóis".

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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