Sabe ler? Então leia Franz Kafka
Tenho pena de quem é capaz de ler e jamais leu Franz Kafka.
Não é fácil termos um exemplo claro de como a leitura impacta a nossa visão de mundo. Essa influência quase sempre acontece de forma enviesada, indireta. Constrói-se aos poucos, de livro em livro. Daí, quando o leitor se dá conta, pronto, tudo mudou. Com Kafka, que nos deixou há um século, aos 40 anos, vítima de tuberculose, o papo é outro.
Em minha cabeça, não há como dissociar Praga do que encontrei na leitura de "O Castelo", um dos romances póstumos do tcheco. Por mais deslumbrante que seja a cidade, um dos lugares mais bonitos em que já pisei, andar pelas suas ruas apertadas e a todo momento se deparar com o castelo medieval intimida quem conhece Kafka.
É preciso ser leitor para sentir com toda a intensidade como aquela construção imensa, opulenta, inabalável se impõe sobre todos. Está ali, sobre nossas cabeças, o que Kafka construiu de maneira formidável em sua obra: o homem atemorizado por forças indecifráveis, tão presentes quanto misteriosas, de dimensões muito maiores do que qualquer sujeito.
A leitura de Kafka impregna na cabeça, transforma nosso imaginário. Passamos a enxergar Kafka por todos os lados. Está no incômodo com pressões descabidas de nosso cotidiano. Está quando nos sentimos encurralados num mundo hostil. Nos corriqueiros absurdos com toques surreais. Está também no que encontramos em livros de alguns outros gigantes do século 20.
Há mais gente que, por outros motivos, aponta a leitura de Kafka como decisiva.
Se há um escritor do século 20 por quem tenho veneração, esse é Kafka, e reivindico ser kafkiano. Kafka disse que um livro tem de ser o machado que corta o mar gelado da nossa consciência; tomo isto como um programa de trabalho. O estranho seria um escritor como ele não ter exercido nenhuma influência disse José Saramago já no final da vida
Sem Kafka, sem Saramago. Sem Kafka, sem parte considerável da melhor literatura produzida desde a metade do século passado. Sem Kafka, sem Gabriel García Márquez.
Gabo era outro que reconhecia o tcheco como fundamental. Sacou durante a leitura de "A Metamorfose": um escritor era livre para construir no texto a sua própria noção do real. "Bastava que o autor tivesse escrito para que fosse verdade, sem mais provas do que o poder do seu talento e a autoridade de sua voz", escreve o colombiano em seu livro de memórias, "Vivir Para Contarla".
Indico a história em que Gregor Samsa desperta de sonos intranquilos transformado num inseto gigante para quem quer começar a descobrir a prosa do tcheco.
"A Metamorfose" é livro ligeiro. O texto flui bem. Estão ali algumas das principais marcas de Kafka: a opressão contra o indivíduo, as pressões familiares e a espinhosa relação com o pai, o trabalho embrutecedor que não dá trégua nem quando despertamos como um bichão estranho...
Kafka levou para seus textos as angústias de quem vive perdido, desnorteado em labirintos pessoais e sociais. E também massacrado por forças estranhas e imbatíveis.
Em livros como "O Processo" e "Na Colônia Penal" o indivíduo se debate contra o estado totalitário, suas regras indecifráveis e suas diferentes formas de nos trucidar. O duríssimo "Carta ao Pai", por sua vez, é um testemunho da versão familiar desse autoritarismo.
"Odeio tudo o que não tenha a ver com literatura, entedia-me conversar (mesmo que a conversa seja sobre literatura), entedia-me fazer visitas, os sofrimentos e as alegrias de meus parentes entediam-me até o fundo da alma", escreveu certa vez Kafka. Está em "Diários" (Todavia, tradução de Sergio Tellaroli), que reúne registros pessoais feitos entre 1909 e 1923.
De certa forma, a própria literatura exerceu seu poder para contrariar o autor. Kafka escreveu muito e publicou pouco ao longo da vida. Somente depois de sua morte que Max Brod, desconsiderando a ordem deixada pelo amigo de aniquilar toda aquela papelada, passou a organizar, editar e publicar diversos trabalhos do tcheco.
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Quero receber"O Processo" e "O Castelo" estão entre os livros salvos das cinzas. A literatura agradece a traição de Brod. E que os leitores façam bom proveito de tudo o que os livros de Kafka têm a oferecer. Poucos autores nos recompensam tanto.
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