Pode um vício ser uma virtude? Afonso Cruz mostra que sim
"Ao contrário de outros tantos vícios, o dos livros é, na verdade, uma virtude. De fato, ter livros não é o mesmo que, por exemplo, ter dinheiro. Ter livros é como ter amigos, ter dinheiro é como ter com que pagar a amigos".
Sempre que mencionava "O Vício dos Livros", de Afonso Cruz, diversos leitores vinham perguntar onde havia arrumado o meu exemplar, um presente. Ainda tenho por perto a edição portuguesa da obra, disponível em poucas lojas brasileiras por algumas centenas de reais. Agora esse problema da raridade acabou.
A Dublinense acaba de lançar por aqui a sua edição de "O Vício dos Livros", uma coleção simpática de breves artigos nos quais Afonso conta histórias e convida a reflexões sobre a vida entre livros. Foi um trabalho decisivo, inclusive, para que eu desse forma ao meu próprio livro sobre livro: "A Biblioteca no Fim do Túnel: Um Leitor em Seu Tempo" (Arquipélago).
Autor de romances como "Jesus Cristo Bebia Cerveja" (Alfaguara) e "Princípio de Karenina" (Companhia das Letras), Afonso tem uma admirável quantidade de fãs no Brasil. O cativante "Vamos Comprar um Poeta" (também da Dublinense) é o trabalho mais festejado pelos leitores brasileiros.
Pelos textos ligeiros de Afonso em "O Vício dos Livros", encontramos um leitor que procura o caminho mais lento entre dois pontos para que possa ler com calma durante a viagem. Esse leitor também recorda de uma história que ouviu quando era criança: um vizinho do avô havia mandado serrar diversos volumes de seu acervo para que coubessem na nova estante.
É um narrador que se emociona com uma dedicatória deixada pelo mesmo avô, que nunca falava sobre as vezes em que foi preso e torturado pela polícia política. "Para o meu neto, para que ele perceba um pouco daquilo que eu passei", deixou o homem num exemplar de "Eles Vieram de Madrugada", de Manuela Câncio Reis.
Kafka, Mario Quintana e Jorge Luis Borges são alguns dos nomes com os quais Afonso dialoga. Lembrando a espanhola Rosa Montero e a argentina Gabriela Cabal, escreve sobre a teoria de que leitores vivem mais do que aqueles que não leem.
Como poderia alguém partir deixando uma grande leitura incompleta? Justifica: a morte seria uma colega leitora que gosta de bisbilhotar o que andamos lendo. Distraída com leituras alheias, esquece de fazer o seu serviço.
Uma característica de Afonso que chama a atenção é como ele, autor de vasta produção e publicado em dezenas de países, lida com certa serenidade com a escassez de leitores mundo afora.
"A desculpa de que determinado entretenimento nos afasta da leitura sempre foi um argumento muito popular, mas falacioso. Os entretenimentos mudam, mas a vontade de ler continua a ser reduzida". Esse vício do qual compartilhamos sempre foi, de certa forma, raro.
Se a maioria se aborrece ao ler um livro, paciência. Paciência que os livros têm. "Os livros são seres pacientes. Imóveis nas duas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor".
Perdem muito aqueles que desprezam o prazer de se encontrar com bons romances, bons contos, bons ensaios. E aqui pesco, uma vez mais, a citação do francês Jules Renard usada por Afonso em um dos textos de "O Vício dos Livros". A frase já apareceu aqui na coluna, na newsletter, foi parar no meu livro... É bonita, sempre vale repeti-la:
"Quando penso em todos os livros que tenho para ler, tenho a certeza de ainda ser feliz".
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