Anthony Bourdain inspira a comer e beber bem antes do inevitável final
É curioso como relações se constroem das maneiras mais improváveis. Quando Anthony Bourdain desencanou da vida, em 2018, passei a prestar atenção ao seu trabalho. A maneira como a morte repercutiu entre pessoas próximas me fez olhar com carinho para a obra do chef de cozinha transformado em estrela pop.
O celebrado "Cozinha Confidencial" (Companhia das Letras) está naquela pilha de livros que aguardam um bom momento para serem lidos. A hora há de chegar logo. Já tive boas passagens com a escrita de Bourdain em "Volta ao Mundo - Um Guia Irreverente", trabalho póstumo (meio que com jeitão de boas sobras, é verdade) publicado por aqui pela Intrínseca (tradução de Livia de Almeida).
Ali estão registros fragmentados desse aguçado caçador gastronômico que desbravou o mundo para comer, beber e conversar. Admiro como Bourdain recusava a mediocridade de tratar a boa mesa como algo apartado da política e de outras esferas da vida. Sobre uma visita à Bahia, escreveu:
"Acho que Salvador em particular é um daqueles lugares para onde, independentemente de qualquer coisa, as pessoas devem ir. Até quem tem medo de viajar, até quem diz: 'Pois é, mas ouvi falar que...' Não! Sabe por quê? A vida existe para ser vivida, cara. Você não pode perder um lugar como este porque não existem muitos lugares no mundo que sequer cheguem perto".
É fácil olhar para a vida que Bourdain levava e sentir uma pontada de inveja. Quem não gostaria de ser bancado para passar 250 dias por ano viajando pelos países mais improváveis de todos os continentes para se empanturrar em refeições memoráveis?
Havia ciladas, claro. De minha parte, dispensaria provar o coração palpitante de uma cobra morta na minha frente. Também não gostaria de ajudar em caçadas ou esquartejamentos de animais recém-mortos; lido melhor com a carne na geladeira do mercado.
Bourdain não vivia só de cervejas geladas com comidas apimentadas no sudeste asiático ou de excelentes vinhos em campos floridos da França.
O documentário "Roadrunner" (Netflix) mostra um tanto dessa estrela fascinada por comidas exóticas, por pratos improváveis. Mas também apresenta o outro lado dessa rotina deslumbrante.
Quem vive entre restaurantes, botecos, praias, montanhas, hotéis, barcos e aeroportos acaba não tendo tempo para se estabelecer, criar um lugar sólido para o seu próprio universo, para o seu mundo íntimo. O lar faz falta.
Da intimidade de seus casamentos ao distanciamento da filha, pesava para Bourdain não ter condições para nutrir laços que também são essenciais. Não tem jeito, mesmo um cotidiano dos mais incríveis tem ônus, tem o seu lado obscuro.
Durante uma crise aguda, num momento especialmente dramático dessas relações cruciais estraçalhadas, Anthony decidiu acabar com tudo.
É linda a citação de Jack Gilbert usada em certo momento do documentário: "Acredito que Ícaro não falhava enquanto caía/ chegava apenas ao final do seu triunfo".
Um Ícaro já sem asas que não despenca pela sua ambição, apenas esmaece porque nenhum sucesso, nenhum estrelato, nenhuma vida extraordinária e invejável dura para sempre.
Mudam nuances, mas o final é certo para todos. O jeito é aproveitar enquanto temos os nossos triunfos. Se for comendo e bebendo bem, viajando pelo mundo e convivendo com quem vale a pena viver, ainda melhor.
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