Em breve será difícil ler livros novos livres de inteligência artificial
Numa conversa, um artista disse desconfiar do poder da inteligência artificial. Contra-argumentei: não acho que essas ferramentas substituirão grandes criadores logo de cara, mas o problema é o pessoal de talento médio. O povo do trabalho protocolar, o grosso de qualquer profissão. Esses estão numa enrascada.
Diversas tarefas já vêm sendo feitas por essas ferramentas e, ao que parece, boa parte do público não se importa muito com os resultados. Exemplo? Como grandes veículos de mídia têm levado a seus leitores traduções bastante porcas de reportagens de fôlego. Muitas vezes o texto tosco vem acompanhado de um "traduzido com ajuda de inteligência artificial". Em outras, o auxílio da tecnologia fica implícito nas frases destrambelhadas.
Na semana passada, profissionais do mercado editorial se reuniram durante três dias em Atibaia. Estavam lá para a 3ª edição do Encontro de Editores, Livreiros, Distribuidores e Gráficos, realizado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL).
Dominar as possibilidades dos livros digitais e audiolivros enquanto livrarias e editoras se estranham na briga por sobreviver sem que um puxe o tapete do outro. Aprimorar a forma de lidar com redes sociais e influenciadores. Dialogar diretamente com consumidores e potenciais consumidores. Esses foram alguns dos assuntos nas palestras e rodas de conversa.
O uso da inteligência artificial foi outro tema do encontro. Em termos artísticos os debates seguem com dogmas, tabus e perguntas sem respostas. Por outro lado, dentre o pessoal que cuida do livro como negócio, essas ferramentas parecem já fazer parte do cotidiano. Em pouco tempo, será difícil colocar as mãos num livro qualquer sem que a inteligência artificial tenha feito, de alguma forma, parte de sua produção.
Estendo a lógica para quem cria o conteúdo. Há quem tenha trocado o Google pelo ChatGPT, Gemini e afins na hora de fazer pesquisas ou tatear ideias. Há quem as use para tarefas como a escrita de e-mails burocráticos ou auxílio na revisão de algum texto. Fora espertalhões com suas sacanagens, os escritos seguirão autorais, mas de alguma forma essas inovações serão utilizadas nas incontáveis pequenas ações por trás da concepção de um trabalho original.
O momento é de usar as traquitanas para facilitar o que é corriqueiro, enfatizaram diversos palestrantes. José Fernando Tavares, CEO da Booknando, sublinhou como a inteligência artificial ajuda na "automação para eliminar tarefas repetitivas". Tarefas repetitivas do tipo, sei lá, escrever umas 500 orelhas de livros, como alguém me contou ter feito longo da vida. Daria certo?
Pelo propagandeado até aqui, com um universo vasto a oferecer como parâmetro, seria possível domar algumas ferramentas para emular o olhar de leitor e o estilo de escrita de um orelhista profissional. Essas tecnologias não criam, mas copiam e plagiam que é uma beleza.
André Palme, CMCO da Skeelo, teve essa curiosidade e experimentou fazer isso que me passou pela cabeça. Reuniu quase uma década de textos escritos para o portal Publishnews e mandou o ChatGPT reproduzir sua visão de mundo e o seu estilo textual para gerar novas colunas sobre determinados assuntos. O resultado, contou, foi medonho.
Inteligência artificial é meio, não é fim. Pelo menos por enquanto. É fundamental revisar o que o troço oferece, conferir fontes, bater dados, apurar o estilo. Etapas de processos enfadonhos já podem ser eliminadas, mas cabe a alguém validar o resultado. Ricardo Costa, CEO da MVB América Latina, lembrou algo importante: essas tecnologias não tomam decisões. Mais do que isso, acrescento, não se responsabilizam pelo que oferecem. No final, é o nosso que segue e seguirá na reta.
Ao lado de André e de Ricardo, Camila Cabete, head de conteúdo da Árvore, enfatizou que esses programas precisam de treinamento contínuo. Se não são capazes de certas atividades hoje, com o aprimoramento tendem a ocupar ainda mais espaços amanhã.
André falou sobre testes com vozes sintéticas para livros em áudio. Alguns resultados permitem fazer em duas horas um trabalho que, com humanos, duraria quatro semanas. Há economia de tempo e de dinheiro. É óbvio que a indústria investirá em pesquisas nesse sentido.
O temor de para onde vamos com isso, ainda mais sem regulamentações decentes, é real.
Não tem jeito, temos que encarar a coisa. Compreendê-la. Admitir que já faz parte do cotidiano e que ocupará cada vez mais espaço. Acompanhar o presente dessas ferramentas para, quem sabe, conseguir se virar no futuro, seja lá qual for a área de atuação de cada um.
E pensar em como lidaremos com os impactos sociais que a inteligência artificial traz e trará. Esse tipo de assunto que deveria estar no centro do nosso debate público, na boca dos políticos, não diferentes variáveis de mamadeiras de piroca.
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