Ariana Harwicz contra os artistas que 'trabalham para agradar'
Uma das tradutoras de "A Débil Mental" procurou Ariana Harwicz com um pedido: usar aspas quando a personagem chama a si mesma de retardada mental. É um termo ofensivo no meu idioma, afirmou essa tradutora. "No meu também", respondeu Ariana. Ceder seria o equivalente a usar próteses morais ou aspas policiais, argumenta a escritora.
A passagem está num novo livro que acaba de sair no Brasil, o primeiro de não ficção de Ariana por aqui. "O Ruído de uma Época" (Instante, como os demais da autora, tradução de Silvia Massimini Felix) é uma reunião de aforismos, pequenos ensaios e correspondências trocadas entre a intelectual e o escritor e tradutor chileno Adan Kovacsics.
Por meio de passagens breves, a argentina desafia muito do senso comum estabelecido no meio literário - e artístico, por extensão. Um texto de fôlego com ideias mais amarradas e articuladas talvez fosse opção melhor para tratar de assuntos espinhosos. Chega a ser irônico: "O Ruído de uma Época" é um livro sobretudo importante, urgente, necessário.
Ariana é dona de uma ficção que perturba leitores. Em seus romances encontramos mães que sonham em dar cabo da família, relações com toques incestuosos, personagens com inclinações à pedofilia. As bordoadas de ótimos títulos como "Morra, Amor" e "Degenerado" agora aparecem de outra forma. Miram aqueles que tentam, de alguma maneira e sempre alegando as melhores intenções, cercear a liberdade artística.
Estão entre os pontos ressaltados pela autora a violência da linguagem e a impossibilidade de escrever sem ofender alguém. Nem que seja ofender menosprezando a inteligência alheia, como tantas vezes acontece, penso comigo. Se este livro tem algum sentido, é o de afirmar a necessidade do paradoxo, celebrar a contradição, ter direito de resistir ao pensamento homogêneo e monolítico, anuncia Ariana nas primeiras linhas de "O Ruído de uma Época".
"Reduzir as contradições dos personagens não é apenas impossível, mas antiliterário. Embora a literatura esteja repleta de antiliteratura, é claro", escreve. "Um romance não é uma audiência judicial. Não é uma sentença", completa.
São alertas, lembretes ou toques que vêm bem a calhar enquanto muita gente confunde narrativa com discurso, criador com suas criaturas, numa visão estreita que despreza nuances. São leitores que esperam achar nos livros um universo perfeito que não encontram no mundo real. Histórias onde as injustiças são vingadas, os acossados de alguma forma triunfam, nem que seja pela superioridade moral, e o bem vence o mal. Parecem não só gostar, mas acreditar nesse maniqueísmo infantil.
Ariana clama pela liberdade criativa e reivindica a diferenciação de escritor, autor, obra e personagens numa época em que tantos fazem uma mistureba em seus julgamentos e se sentem confortáveis para exigir que todos se portem da mesma maneira. Confiantes de que são donos indiscutíveis da razão, cobram que leituras sejam feitas conforme suas convicções, que os demais leitores recebam e interpretem determinados textos de acordo com um olhar preestabelecido.
"Esta época nos presenteia com um novo modelo de artista consagrado e amado. É o artista com seguidores que lotam estádios, que o levam a superar recordes, que veem tudo o que ele faz, mas não gostam de sua música, não se emocionam com suas canções. E, então, o que eles celebram? Celebram a pessoa. São como um fã-clube da pessoa. São os artistas que trabalham em uma imagem política, trabalham para agradar", analisa Ariana.
É um trecho que se conecta com o que conversei com o professor Julio Pimentel Pinto, autor de "Sobre Literatura e Histórica: Como a Ficção Constrói a Experiência" (Companhia das Letras), num papo recente para o podcast da Página Cinco.
Em certa altura da conversa, ao falar sobre como a morte do autor havia passado para dar lugar e interpretações em que a figura do escritor se projeta sobre seu trabalho, cogitei a hipótese de caminharmos para outra condição. Estaríamos diante da morte do texto na literatura? E isso não significaria também a morte do leitor, reduzido a mero consumidor forjado para aplaudir a pessoa por trás de um livro qualquer?
Julio Cortázar também vem à mente durante a leitura de "O Ruído de uma Época". Apesar de todo engajamento político, o autor de "O Jogo da Amarelinha" se preocupava com o risco de pensar em bando, sucumbir a discursos hegemônicos em seu meio. Sorriria, creio, ao ler de Ariana: "A única condição de um escritor, seja de qual geração, cultura e época ele for, é a de ser único e irredutível".
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