'Catedrais': o horror provocado pelas caraminholas da igreja
O corpo de Ana, uma adolescente, foi encontrado num terreno baldio. Carbonizado e esquartejado, apresentava indícios de que poderia ter sofrido violência sexual. Ao enterrar a sua irmã, Lia se rebelou contra a religião e contra a família. Rompeu relações e se declarou ateia. Deixou a Argentina e reorganizou a vida na Espanha.
Os traumas, os silêncios e a busca por respostas mesmo décadas após o assassinato de Ana estão no centro de "Catedrais". Publicado originalmente em 2020, o romance de Claudia Piñeiro acaba de sair no Brasil pela Primavera Editorial com tradução de Marcelo Barbão.
Com um quê de policial, a história se faz por meio dos relatos de sete vozes: as irmãs da garota morta, o marido de uma dessas irmãs, o filho desse casal (responsável pela parte mais arrastada da narrativa), um legista, uma amiga e o pai da vítima. Este é personagem mais interessante de uma trama na qual a autora força a mão em alguns pontos do enredo e apela no tom sensacionalista de um dos capítulos.
Claudia Piñeiro é uma das principais escritoras em atividade na Argentina. Responsável por grandes sucessos como "As Viúvas das Quintas-feiras", também atua como roteirista. Ela é, por exemplo, uma das cabeças por trás da série "Vosso Reino", disponível na Netflix.
A escritora será uma das convidadas da edição deste ano d'A Feira do Livro, que acontecerá entre os dias 29 de junho e 7 de julho na Praça Charles Miller, no Pacaembu, em São Paulo. Junto de "Catedrais", outro trabalho de Claudia chega aos leitores brasileiros: "Elena Sabe" (Morro Branco, tradução de Elisa Menezes), romance de 2007 transformado em filme em 2023.
A dedicatória de 'Catedrais" explicita o que o leitor terá pela frente: "Aos que constroem sua própria catedral, sem deus". A fé e a forma como dogmas católicos pesam sobre quem parece não conceber a vida sem estar subordinado a algo em tese superior são cruciais para os desdobramentos da ficção.
É em nome de deus - ou usando a criação mitológica como desculpa - que relações são estraçalhadas e atos bárbaros são cometidos. Em meio a um conjunto de demagogias, personagens sucumbem diante das caraminholas incutidas por padres e afins em suas cabeças. A salvação ilusória vendida pela igreja e o horror (este bastante real) são elementos indissociáveis nesse romance de Claudia Piñeiro.
A leitura de "Catedrais" ganha uma camada extra por esses dias, enquanto a Câmara se assanha para fazer com que nossas leis sejam ainda mais retrógradas em relação ao aborto. De forma enviesada, políticos apoiados por eleitores atormentados por massarocas sagradas vem à mente enquanto avançamos nas páginas do romance.
"O Conto da Aia", distopia de Margaret Atwood (Rocco, tradução de Ana Deiró) na qual somos apresentados a um mundo em que as mulheres são reduzidas a instrumentos reprodutivos, tem sido lembrada com frequência. "O Acontecimento", no qual a ótima Annie Ernaux escreve sobre o aborto clandestino que fez na juventude, poderia estar em evidência.
"Teria sido preciso mais lágrimas e súplicas, uma representação melhor do meu desespero real, para que ele entendesse meu desejo de abortar... Não pronunciamos nenhuma vez a palavra aborto, nem ele nem eu. Era uma coisa que não tinha lugar na linguagem", escreve Annie. A tradução é de Isadora de Araújo Pontes e está na edição de "O Acontecimento" publicada pela Fósforo.
"Catedrais" também trata do tabu no entorno de certas questões assombradas pelo obscurantismo que emana de sermões. Claudia, porém, desliza na ânsia de deixar bem clara a mensagem transmitida com sua história. Ao longo do romance há momentos em que a narrativa ganha tom de discurso. Aqui, até a linguagem muda, passa a ser mais burocrática.
Com a autora querendo ensinar algo ao leitor, há passagens repetitivas, redundantes ou que escancaram o que poderia permanecer implícito - confiemos na capacidade dos leitores, gente. São construções mastigadas e redundantes que têm mais a ver com textos nos quais buscamos convencer o outro de algo do que com uma obra de arte.
Por outro lado, é de se admirar o talento de Claudia para construir bons personagens que se delineiam com facilidade na mente do leitor. Isso, aliado à prosa que flui bem, que nos impele adiante para ver onde a história vai dar, ajuda a explicar o sucesso da argentina.
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