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O 'cagara o juízo' de Machado de Assis e o tornozelo inchado de Messi

Mandava um ojo de bife com purê de papas num simpático restaurante de estrada quando meu sobrinho tirou dois Messis do bolso. Havia comprado os chaveiros na base do Aconcágua, disse. Horas antes, passeávamos pelos Andes, disparávamos bolas de neve e avistávamos a montanha mais alta América com seu pico enchapelado por uma nuvem cenográfica.

Perguntou se eu queria ficar com um. Na hora: quero um Messi, claro. Larguei a taça de cabernet franc, estiquei a mão e peguei o meu chaveiro. Assim que bati o olho naquela caprichada reprodução do maior jogador de todo o meu tempo, um detalhe chamou a atenção. O tornozelo esquerdo do craque estava inchado.

Que sacada! É uma versão do Messi da Copa de 2022, pensei. Um toque quase imperceptível, mas suficiente para que olhos atentos notem não se tratar de uma imagem qualquer, mas uma reprodução do gênio em seu maior momento.

Antes da frustrante estreia contra a Arábia Saudita, a foto do atacante com o tornozelo esquerdo inchado, com uma espécie de bola de bilhar pendurada sobre seu pé magistral, corria o mundo. Quem ama futebol estava apreensivo. Messi conseguiria jogar bem com o troço logo sobre a canhota de seus milagres?

A resposta todos conhecem. Messi fez um torneio memorável e ficou com a taça após a final com a França, talvez o maior jogo de futebol de todos os tempos. Com o tornozelo baleado que Messi ganhou a Copa e a Copa ganhou Messi. Só podia: quem fez o chaveiro tinha essa história bem clara na mente.

Cético é uma desgraça. Para ter certeza, pedi para ver o outro chaveiro, aquele que ficou com meu sobrinho. Eram dois Messis praticamente idênticos, exceto por um detalhe. O segundo era um souvenir qualquer, banal, com as duas pernas do jogador preservadas, bem-acabadas, em perfeitas condições.

A genialidade que tinha em mãos não passava de um mero descuido na pintura. Era melhor ter mantido a fantasia inabalada. Às vezes um erro, um lance do acaso, traz um charme, descamba numa versão inusitada, surpreendente, deixa a coisa melhor do que sua proposta original. Meu Messi borrado é uma obra de arte involuntária.

E aqui lembro Machado de Assis. Não que um erro tenha exatamente melhorado um dos seus textos, mas ofereceu ao leitor uma fresta para imaginar um Bruxo do Cosme Velho diferente daquele que estamos habituados.

Em 1902, a Irmãos Garnier, nome fundamental da história editorial brasileira, trabalhou na reunião dos quatro livros de poemas de Machado. "Poesias Completas" foi impresso na França. Por lá, algum tipógrafo tropeçou nas letras e cunhou uma pérola dentro da caminhada machadiana com a literatura.

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Ao justificar a retirada do prefácio de um dos livros que integram "Poesias Completas", Machado considerou fruto da amizade com o prefaciador o elogio a seus versos. "A afeição do meu defunto amigo a tal extremo lhe cegara o juízo", escreveu. Só que a versão do tipógrafo foi outra. Meteu ali um "lhe cagara o juízo".

Dou risada ao lembrar dessa preciosidade. Pessoalmente, prefiro um juízo cagado do que cego. O erro resultou numa construção nada elegante, de tom jocoso. Machado, ainda naquele começo de século 20, não gostou da edição involuntária.

Quando o pessoal da editora notou a presepada, organizou um mutirão para rasurar os livros e transformar com caneta aquele A intruso no E original. Felizmente, alguns exemplares escaparam da correção.

No final, três versões do livro chegaram aos leitores: com cagara, com cegara improvisado e a edição revisada, já com a composição correta. Todos são raros. Se pudesse escolher um para a minha biblioteca, certamente seria o volume no qual o juízo do amigo estava cagado.

Da mesma forma que não troco meu Messi - Edição Especial Campeão do Mundo por nenhum chaveiro em perfeito estado.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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