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Camila Sosa Villada e a escrita como primeiro ato de 'travestismo'

Na escola, apaixonada pelo professor de educação física, decidiu começar a escrever. Estava perdida e confusa, não podia contar seu segredo para ninguém. Criou um alter ego - Soledad - e usou as folhas do caderno para elaborar uma história na qual a protagonista se apaixonava por aquele homem mais velho. Era a primeira vez em que falava de si como mulher.

"Meu primeiro ato de travestismo foi pela escrita", conta Camila Sosa Villada em "A Viagem Inútil: Trans/escrita" (Fósforo, tradução de Silvia Massimino Felix). O livro é uma das novidades da autora recém-lançadas no Brasil.

Também acabaram de sair por aqui o romance "Tese Sobre uma Domesticação" (Companhia das Letras) e "A Namorada de Sandro" (Tusquets), reunião de textos breves e poemas que podem ser encarados como uma espécie de novela fragmentada.

Uma das principais autoras latino-americanas do momento e bem lida no Brasil desde 2021, quando a Tusquets publicou o romance "O Parque das Irmãs Magníficas", Camila foi uma das convidadas da edição da vez d'A Feira do Livro, que acontece em São Paulo.

"A Viagem Inútil" é um ensaio autobiográfico no qual a escritora volta a episódios da infância em Córdoba para compreender a natureza de sua relação com a literatura. A escrita veio do pai, a leitura veio da mãe. Isso enquanto buscavam vencer a miséria e duelavam contra inimigos como o alcoolismo.

Num texto muitas vezes repetitivo, em que redundâncias soam mais como descuidos do que como estilo, Camila diz escrever para que uma história seja conhecida. A história de seu "travestismo", de sua família, das diversas tristezas e ausências que marcaram a infância. Também escreve para "contar a luta da minha família contra a pobreza, uma luta que nos devastou e encheu de rancor, desgosto e indiferença, todos contra todos".

Num ambiente desses, chega a ser incompreensível se deparar com alguém passando horas e mais horas mergulhada em livros ou se dedicando à escrita. Camila se vê como uma rebelde por desafiar essa lógica, dedicar-se a atividades que exigem períodos de reflexão. Inutilidades aos olhos de quem pensa que a vida se limita à produção incessante, destrambelhada.

A autora lembra de sua admiração por Bolaño e imagina uma receita ao pensar na escritora que gostaria de ser. Essa mulher perfeita para sua literatura viria da mistura de Wislawa Szymborska, Carson McCullers e Marguerite Duras. E com uma pitada "da desconfiança" de Truman Capote.

É inocente confundir criador com suas criaturas, sei disso. Como sei que elementos biográficos podem ser uma chave interpretativa válida, mas não absoluta, para certos textos. Assim, não deixa de ser interessante notar como aspectos apresentados por Camila nesse seu ensaio íntimo também são observados nas suas ficções.

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A violência contra corpos dissidentes, a busca por carinho e companhia, a resiliência de quem não tem onde se abrigar num mundo hostil, o desejo de ser amada e o amor visto como uma espécie de fantasia. São marcas encontradas tanto em "A Viagem Inútil" quanto em "O Parque das Irmãs Magnífica" e "A Namorada de Sandro", isso para ficar no que já li da autora.

"É como se, com a chegada da leitura e da escrita, também tivesse chegado o talento para mentir, inventar, exagerar e esconder. Descubro que tenho um poder. O poder de mentir e ser crível. Minha primeira grande mentira é que sou milionária", resgata.

Camila defende que experimentar sentimentos como felicidade e tristeza pela literatura podem ser fisicamente reais, o que dá uma boa ideia do quanto acredita na força de um texto bem elaborado.

Assim, não chega a surpreender quando aponta a leitura como uma das coisas mais complexas que existem. "Não é uma recreação, não é um passatempo, não é um vício lúdico, não é agradável, não facilita o mundo para nós. Ler é uma atividade exaustiva e prejudicial", confia.

Defendo a leitura como diversão, uma atividade que precisa ser prazerosa, apesar dos muitos poréns aqui implicados. Causa um ruído me deparar com essas palavras de Camila. Mas tudo se encaixa no final de seu raciocínio. "Como o amor, não há nada que possa nos causar mais dano e também mais felicidade".

Estamos diante de uma autora que vive em meio a conflitos. O amor para Camila, sabemos pelo seu ensaio e pela sua obra ficcional, nunca foi sereno, mas sempre foi indispensável. Como a literatura.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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