Saturno Translada: Desilusões de quem acreditou nos estudos no país da soja
"Você é do tipo burro que pensa que no país onde se chega à sétima posição no ranking de PIB na base de soja, bife, petróleo e minério pode haver algum interesse em seus novos experimentos de intercalação entre modos gregos e variações dodecafônicas".
Melancolia. Desilusão. Desesperança. São sentimentos que transbordam de "Saturno Translada - Um Ensaio Romanesco", de Lucas Lazzaretti. O livro saiu em 2022 pela 7Letras e ficou entre os finalistas do Jabuti no ano passado, na categoria Romance Literário.
Dividido em quatro partes, é um romance feito com diferentes vozes que se apresentam ao leitor por meio de gêneros textuais diversos. Em comum entre os personagens, os primeiros contatos com as amarguras da vida adulta num Brasil que capota. É um país que prometeu muito, mas quase nada lhes entregou.
É ótima a construção ficcional feita por Lucas de uma geração que apostou nos estudos acreditando ser essa a chave para um bom futuro. Pois quer trabalhar com música clássica? Confia. Estuda que vai dar certo, como se em cada esquina não encontrássemos o pessoal do orgulho brucutu, gente com desprezo ou ódio à cultura, à educação.
Ao olhar principalmente para os meios artístico e universitário, o autor elabora um sentimento comum a brasileiros de diferentes áreas, uma desolação que se conecta com outros momentos de nossa história. As primeiras decepções com a redemocratização no início dos anos 1990, por exemplo.
Encontramos em "Saturno Translada" o Brasil estraçalhado por ressentimentos e pensamentos bárbaros encubados na sociedade que descambaram em horrores que ainda vivemos. Há referências implícitas a episódios marcantes da última década, como os ataques estúpidos contra a arte. Fica fácil para o leitor informado e de memória razoável notar quando Lucas dá traços ficcionais ao que aconteceu em 2017 com a exposição Queermuseu, em Porto Alegre, marco da marcha fascista.
Se o autor opta por não nomear aquela mostra, talvez fosse uma boa manter a coerência e não explicitar alvos dos tresloucados. O leitor poderia chegar sozinho à conclusão de que uma das peças atacadas era de autoria de Adriana Varejão. Não que seja um problema grave, apenas uma das poucas ressalvas ao romance. Uma outra: certas escolhas vocabulares soam como malabarismo ou exibicionismo.
Esse mundo para o qual Lucas olha e leva para a literatura não apresenta grandes saídas. Se a situação é difícil no país natal dos personagens, outros cantos também se mostram hostis. Com assédios de diferentes tipos, racismo e misoginia, sequer o ambiente universitário proporciona uma via segura.
Outra camada relevante de "Saturno Translada" é a forma como a arte vem sendo tratada, reduzida às boas intenções ou à figura de carne e osso dos artistas. Estão ali a busca por "produtos imediatos, palatáveis e moralmente condicionados" e a estrutura que busca promover personalidades mais pelo histórico de vida ou visões de mundo do que por seus quadros, por seus livros.
Doutor em Filosofia, Lucas tem 35 anos. Também é autor dos romances "Sombreir" e "O Escritor Morre à Beira do Rio", do livro de contos "Placenta: Estudos" e da reunião de poemas "Memórias do Estábulo". Como tradutor, já verteu para o português nomes como o argentino Juan José Saer, o estadunidense John Williams e o guatemalteco Augusto Monterroso. Como crítico literário, costuma publicar suas análises em vídeo no canal Livrada!
Até que ponto dá para viver pelo que se sonha? Há saída em alguma parte do mundo? Mais do que isso: qual é a saída possível? Como se proteger ou escapar da necrópole?
São perguntas que ficam ao final da leitura de "Saturno Translada", romance geracional muito bem arquitetado em sua polifonia. E tão triste quanto competente ao nos fazer revirar o que vivemos neste país que perdeu o bom rumo que outrora tomou. Ou que vendeu essa ilusão e, ingênuos, acreditamos.
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