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Opinião

New York Times e os melhores livros do século: desconfiem de listas assim

Imagine o seguinte: um jornal de muito prestígio no oriente, digamos que um tal de Gazeta de Pequim, resolve elaborar uma lista com os 100 melhores livros deste século. Vale qualquer coisa, desde que publicada a partir de 1º de janeiro de 2000.

Chamam mais de 500 pessoas para votar. Tudo gente vista pela publicação como intelectual de valor universal, claro. Não estamos falando de um periódico provinciano qualquer, mas de um jornal que se vende (e é visto) como o mais importante do mundo.

Daí chegam os votos. As indicações são tabuladas e a lista é apurada. Para surpresa de quase ninguém, dos cem títulos elencados apenas 13 foram escritos originalmente numa língua diferente do mandarim. Para o pessoal consultado pela Gazeta de Pequim, quase tudo o de mais relevante escrito nos últimos 24 anos nasceu do mesmo idioma. Uma coincidência incrível!

Desconfiaríamos, com razão, da legitimidade de algo assim.

Pois troque a fictícia Gazeta de Pequim pelo New York Times e o mandarim pelo inglês. Pronto, é exatamente isso que temos na lista com os pretensos 100 melhores livros do século 21 publicada na semana passada pelo jornalão dos Estados Unidos.

Da centena de obras listadas, apenas 13 nasceram em línguas que não a inglesa. Quatro vêm do espanhol e três do italiano (graças a Elena Ferrante). Há ainda livros escritos em dinamarquês, russo, norueguês, francês, sul-coreano e alemão. Fora isso, só em inglês se escreve bem neste mundo, parece.

Beleza, chega a ser curioso ver Ferrante na primeira posição com "A Amiga Genial". Mas trombar com Jonathan Franzen e o seu "As Correções" fechando o top 5, bem à frente de "2666", do Bolaño, já dá vontade de largar a relação e tirar um cochilo. Eu tenho é pena desse povo avestruz, que tem a própria língua como o buraco em que soca a cabeça para ignorar quase toda a literatura que existe pelo mundo.

Do francês temos Annie Ernaux com "Os Anos" em 37º lugar, mas não fica meio estranha uma lista dessas desprezar Michel Houellebecq? Para seguir na língua do croissant, não haveria espaço para Scholastique Mukasonga? E Saramago, só para pensarmos em alguém de nosso idioma sem cair no pachequismo? Tem tanta coisa em inglês melhor do que "As Intermitências da Morte"?

A ficção latino-americana contemporânea está ali com o excelente "Temporada de Furacões", de Fernanda Melchor (82º lugar), e o supervalorizado Benjamin Labatut com "Quando Deixamos de Entender o Mundo" (83º). Há uma lista de autoras que deveriam estar à frente do chileno: Mariana Enriquez, Cristina Rivera Garza, Selva Almada...

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Samanta Schweblin, ausência imperdoável, seria uma grande representante do conto, um dos gêneros sub-representados. E será que não leram "A Festa do Bode", do Vargas Llosa?

Pô, mas nada do que foi escrito em inglês presta? Não!

Brincadeira. O ponto não é esse.

Quando olhamos para qualquer lista do tipo, normal abrirmos um sorriso quando encontramos menções ao que curtimos. Gostei de ver por ali "O Ano do Pensamento", da Joan Didion (12º lugar), e "A Estrada", do Cormac McCarthy (13º), só para ficar em dois exemplos dos Estados Unidos - que, convenhamos, não mereciam posições tão altas.

"Os Detetives Selvagens", do Bolaño, "O Fim do Homem Soviético", da Svetlana Aleksiévitch, e "Septologia", um do Jon Fosse que não vejo a hora de ler, também tiraram sorrisos sinceros.

Listas sempre devem ser analisadas por vieses distintos. Primeiro, óbvio, pelo que apresentam. Depois, pelo que deixam de fora. Tão importante quanto: pela época em que foi feita e por quem são os responsáveis por sua elaboração.

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Servem para divertir e funcionam como ponto de partida para reflexões e controvérsias. Se vistas de forma razoável, auxiliam a mapear leituras que, sim, merecem ser feitas. Só não podem ser levadas a sério demais, vistas como definitivas ou qualquer bobagem do tipo, sejam elas feitas pela Gazeta de Pequim ou pelo New York Times.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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