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Olimpíadas, colonialismo e protestos com cocô: Formas de conhecer a França

Difícil explicar o que nos atrai em certas literaturas. Quando paro diante dos livros e me deixo levar, não é raro acabar com algum francês em mãos. Há quem diga que ler romances é a melhor forma de conhecermos a fundo uma sociedade com todas as suas virtudes, podridões e contradições.

Pois digo que graças a autores e autoras, consigo compreender um pouco melhor esse país que não tem saído da minha televisão nos últimos dias.

É regra: durante Olimpíadas e Copa do Mundo a mesa da sala passa a ser a bancada de trabalho e os horários ficam subordinados ao que se passa nos campos, nas pistas, nas quadras, nas piscinas, nos ginásios... Vivemos para ter fagulhas de felicidade inexplicável como a provocada pelas medalhas de Rebeca, Flávia, Jade, Julia e Lorrane, Rayssa Leal, Beatriz Souza e o povo do judô.

Mas falemos dos nomes que me são mais familiares. Dois dos meus autores favoritos são franceses que antagonizam. Capaz de sair troca de ofensas se alguém colocar Annie Ernaux e Michel Houllebecq juntos numa mesma sala. Alfinetadas públicas rolam de vez em quando. Pois eles que se entendam - ou não se entendam, isso não é problema meu.

Romances como "Serotonina", de Michel, e "O Lugar", de Annie, ajudam a compreender uma sociedade profundamente marcada pelos acontecimentos do último século. Um pessoal afeito a queimar carros e a despejar cocô na porta de autoridades enquanto se debate com as diferenças culturais entre a cidade e o campo, o provinciano e o cosmopolita, as mudanças e as tradições, a secularidade e a religiosidade.

Um lugar que precisa lidar melhor com o próprio colonialismo. Essa é uma das camadas de um dos melhores romances lidos nos últimos meses: "A Mais Recôndita Memória dos Homens", do senegalês Mohamed Mbougar Sarr, que há anos vive na França. A complexidade de uma personalidade, as marcas do racismo e a fuga de estereótipos são temas desse grande livro.

Seguindo com o olhar para a literatura francesa não pelo local de nascimento de seus autores mas pela língua, as marcas coloniais permanecem expostas. Em livros como "Baratas" e "A Mulher de Pés Descalços", Scholastique Mukasonga escreve sobre o processo que levou Ruanda a viver o horror genocida no final dos anos 1990. Maryse Condé é honesta ao expor a confusão com a sua própria identidade e a dura descoberta do lugar que ocupa no mundo em "O Coração que Chora e que Ri".

E há Camus, claro. O francês de origem argelina é exemplo de alguém que não se dobra a qualquer absurdo da moda. "O Estrangeiro" segue como um dos maiores livros do século 20 e tem lugar cativo por aqui quando o assunto é início memorável. Pego a tradução de Valerie Rumjanek:

"Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: 'Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.' Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem".

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As dívidas são grandes quando penso nos clássicos. Precisarei recomeçar "O Vermelho e o Negro", de Stendhal - parei na metade, pelo que me lembro. Caminhei pelos primeiros volumes da longa série de Proust, mas "Em Busca do Tempo Perdido" merecerá toda a calma de algum outro momento. Balzac carece de mais atenção. E agora noto: passada a juventude, é hora de reler Flaubert.

Não é do país de Teddy Riner, mas merece entrar aqui: um dia retomarei "Uma História de Duas Cidades", clássico de Dickens sobre a época da Revolução Francesa. Aliás, a abertura das Olimpíadas com o encapuzado carregando a tocha pelas alturas de Paris reviveu a raiva passada ao jogar "Assassin's Creed: Unity". Como pode alguém fazer um jogo tão ruim ambientado logo na época em que a guilhotina cantava alto?

E não é ficção, mas também merece estar aqui: "A Comuna de Paris: 1871: Origens e Massacre", de John Merriman, é um ótimo livro sobre, claro, a Comuna de Paris. Fez falta conhecer melhor esse evento histórico quando estive pela cidade. Sacré Coeur: bela carcaça feita sobre cadáveres da população. Levei um pouco desse momento à apresentação que escrevi para a edição da Zahar de "O Fantasma da Ópera", de Gaston Leroux.

Não abrirei a preciosa caixa dos quadrinhos nessa breve volta pelos meus franceses. Só digo uma coisa: sempre rende bons momentos a leitura de Fabien Toulmé.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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