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Opinião

Anthony Bourdain: 'Encare as coisas com senso de humor. Você vai precisar'

Outro dia escrevi sobre a pontada de inveja diante da vida de Anthony Bourdain. Quem não gostaria de rodar o mundo durante o ano para comer e beber muito bem, sempre servido com o que havia de melhor e de mais excêntrico em cada canto por onde passava?

Comentava "Roadrunner", disponível na Netflix. Em certo momento, o documentário entrelaça a trajetória do chef que virou estrela pop com versos de um poema de Jack Gilbert. "Acredito que Ícaro não falhava enquanto caía/ chegava apenas ao final de seu triunfo". Ótimo!

Também compartilhei uma pendência: ler "Cozinha Confidencial" (Companhia de Mesa, tradução de Beth Vieira e Alexandre Boide). Publicado originalmente em 2000, o livro catapultou o nome de Bourdain.

Pois bem, dívida quitada.

Duas décadas e meia após a publicação do livro que provocou um barulho imenso, seria bobagem chegar aqui e alardear as revelações de Bourdain. Todo mundo sabe o quanto "Cozinha Confidencial" desvela os bastidores dos restaurantes estadunidenses, especialmente de Nova York. Ou os restaurantes daquele mundo que vislumbrava o século 21, para ser mais exato; as coisas sempre podem mudar - muitas vezes para a pior.

Não coma peixes no começo da semana. Saiba que certas comidas são reaproveitadas. Tenha consciência: a beleza que chega à mesa é feita por profissionais mantidos sob condições de trabalho insalubres. E aqui um ponto se sobressaiu em minha leitura.

Vejo paralelos entre o que Bourdain apresentou em seu livro com parte da cultura do jornalismo. Certa romantização de uma estrutura profissional que vende como normal, quase pitoresco, viver sob abusos, subserviências, grosserias. Trabalhar jornadas intermináveis, esquecer o mundo lá fora, exigir que as pessoas ao redor compreendam que o sujeito está à disposição do serviço, sempre.

O autor chega a chamar o líder de cozinheiros de boiadeiro de psicopatas num dos achados do livro. Bom também ver como retrata a tensão com os imigrantes num país que depende de latinos para que os pratos cheguem à mesa.

Momento curioso é quando escreve a respeito de uma viagem para o Japão, terra que o impressionou e onde deu autógrafos para um monte de gente morta. O estadunidense desconhecia tanto quanto eu essa ideia de pedir que se assine um livro para alguém que já partiu.

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Não, "Cozinha Confidencial" não faz de Bourdain um grande escritor, como costumam dizer por aí. É sim um bom livro, bem escrito, mas vamos com calma. Certo comedimento cai bem.

Estamos falando de um autor competente, corajoso pelo que expôs e por como se expôs, mas que não ombreia com os nomes realmente grandes da não ficção. Pelo menos em termos de estilo, de qualidade de texto, de acabamento estético.

Não chega a ser um demérito que reduza o trabalho de Bourdain. O chef era um cara que conhecia a importância das histórias que tanto contou. Ao elencar dicas para quem quer seguir na área destrinchada, orientou: "Leia!".

Leia livros de culinária, publicações da área, receitas. Conceitos, tendências, história de negócios do setor para colocar as próprias desgraças em perspectiva, também a história da culinária. Sabia da importância do conhecimento, de não ser um ignorante orgulhoso. "Na Pior em Paris e em Londres", de George Orwell, é um dos títulos que considerava imprescindível.

E há uma outra dica de Bourdain que me parece servir para tudo na vida: "Encare as coisas com senso de humor. Você vai precisar".

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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