Tradicional pizza italiana? Livro alerta para as papagaiadas da gastronomia
A cerveja que seria amarga porque antigamente atochavam lúpulo no preparo para a bebida inglesa chegar fresca à Índia. A tal receita de família que, misteriosa e intocável, atravessa gerações. A levedura que veio sei lá de onde e continua fabricando milhões de panetones meio século depois. O ovo feito por galinhas felizes.
É grande a quantidade de bobagens que cruzamos por aí e muitas vezes sequer temos condições de notar. A todo momento tropeçamos em historinhas deturpadas, romantizadas ou simplesmente inventadas para ajudar a vender uma infinidade de produtos. Na gastronomia não é diferente.
Toda bebida, toda comida, todo restaurante... Todos querem ter uma linhagem da qual se orgulhar, uma curiosidade para apresentar ao consumidor, uma tradição para chamar de sua. De preferência com origem num passado bem distante e idealizado.
Fazer com que o leitor levante a guarda contra essas artimanhas da propaganda e passe a desconfiar do monte de histórias disseminadas acriticamente é o principal mérito de "As Mentiras da Nonna". Recém-publicado pela Todavia com tradução de Alessandra Siedschlag, o livro de Alberto Grandi mostra como a tal cozinha italiana é, acima de tudo, uma invenção do marketing.
Professor de história da alimentação da Universidade de Parma, o autor defende que o mito dessa cozinha é bem recente: nasceu nos anos 1970, num movimento para valorizar produtos locais e incentivar o turismo. Por trás da suposta tradição estão relances de hábitos e pedacinhos de histórias remendados e colados para se criar uma mitologia culinária.
O passado da Itália é feito sobretudo de miséria e fome, argumenta Grandi. Na península costurada como país em 1861, camponeses comiam o que tinham à disposição. Dificilmente conseguiam ir além de uma polenta rala.
Pratos elaborados e produtos requintados eram luxos de uma pequena elite e raramente atravessavam séculos sem mutações ou esquecimentos. Ou seja, desconfie de quando tentam lhe empurrar algo como sendo idêntico ao feito, sei lá, na Idade Média, quando inclusive os parâmetros de gosto eram bem diferentes dos atuais.
Grandi aponta o massivo deslocamento de italianos para as Américas entre os séculos 18 e 19 como um fator crucial para que tal gastronomia tomasse a forma que tem hoje. Neste canto do mundo, os emigrantes tiveram mais acesso a uma boa diversidade de produtos.
Começaram, então, a misturar o que achavam neste continente com algumas receitas básicas carregadas consigo. A imagem da pizza como tradicional da Itália, por exemplo, é um "efeito colateral" da emigração de italianos sobretudo para a América do Norte, aponta o autor. O macarrão à carbonara, tão na moda nos últimos anos, seria outra criatura parida dessa confluência de culturas transatlânticas.
"O famoso espaguete à carbonara, nascido após a Segunda Guerra Mundial, para todos os efeitos era americano, pelo menos nos ingredientes, que de fato eram fornecidos pelas tropas de ocupação. Eu diria que o espaguete à carbonara não é nada além de um típico café da manhã americano (ovos e bacon), com a adição da pasta".
Em que pese certas repetições desnecessárias (problema cada vez mais comum em livros de não ficção), algumas argumentações frágeis e um claro deslumbramento do autor pela França e pela Inglaterra, "As Mentiras da Nonna" cumpre bem uma de suas funções.
Está aí menos para fazer com que viremos a cara para o que nos é vendido como tradição gastronômica italiana - desde que sejam bons, tanto faz a origem da minha pizza ou do meu carbonara - e mais para que nos atentemos para o quanto passados são inventados a partir de reformulações fantasiosas e migalhas de realidade. Tudo em nome das vendas.
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