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Opinião
Bispos, coachs e festa da literatura juvenil: notas sobre a Bienal do Livro
A 27ª edição da Bienal Internacional do Livro de São Paulo chegou ao fim ontem. Deixo aqui impressões e reflexões sobre o que vi e ouvi no evento ao longo desses últimos dias:
- A Bienal do Livro de São Paulo é a festa da literatura juvenil. Isso fica claro ao olharmos o perfil dos estandes, todos muito instagramáveis, que ocuparam o espaço central do evento neste ano. Grandes editoras optaram por privilegiar seus selos e autores voltados para jovens e adultos com a cabeça ainda na adolescência.
- Um continente de literatura juvenil cercado por livros de padres, bispos e coachs. Eis uma definição possível para o que vi pelo Anhembi. Proselitismo religioso e livros que prometem milagres financeiros têm ganhado cada vez mais espaço no mercado editorial. Sintomas de um povo em busca de discursos que confortem e alimentem ilusões.
- Mas não só. As mesas que mediei com Samir Machado de Machado e o cubano Leonardo Padura, Socorro Acioli e a colombiana Andrea Cote e Ana Elisa Ribeiro e Caetano Galindo tiveram bom público. São sinais positivos.
- As vendas, no geral, foram bem, muito bem. Expositores de diversos portes e voltados para diferentes leitores estavam contentes, falavam de cifras acima das expectativas. Comemoravam a exposição da marca e o contato direto com o público aliados com uma boa grana entrando no caixa.
- Mais do que isso. Contrastando com pesquisas importantes do setor, há relatos de algumas editoras de vendas acima das expectativas ao longo de todo o ano.
- É uma informação que colide com o que ouço de pequenos editores, normalmente dedicados apenas à publicação de livros, digamos, pensados para leitores mais maduros. Estes se queixam de vendas cada vez mais fracas e manifestam uma mistura de preocupação com descrença ao olhar para o futuro.
- A impressão que fica é: quem já é grande e aposta em determinados tipos de literatura tem força para ficar cada vez maior. Já os pequenos... Um mercado cada vez mais concentrado na mão de alguns pouco gigantes não é --ou não seria-- exclusividade do meio editorial. Não que isso console. Quem perde é a diversidade literária. E os leitores, consequentemente.
- Circular pelos estandes e olhar para as listas dos mais vendidos das editoras na Bienal é uma ótima forma de perceber o que os leitores jovens andam lendo: fantasias, suspenses, romances açucarados, livros em prol de causas louváveis, temas urgentes cercados de didatismos, literatura que conforta... Estão no mundo da ficção, o que é importante.
- A pergunta que fica: como fazer com que se mantenham leitores quando a vida começar a lhes atropelar com boletos, crianças e afins? E uma outra que deveria entrar na conversa: como fazer com que estejam em constante formação, sempre procurando aprimorar a forma de se relacionar com os livros e compreender a literatura, não se limitando ao universo mais pop?
- Gosto do que disse Juan David Correa, ministro da Cultura da Colômbia, país homenageado da Bienal deste ano. Está numa entrevista para a Folha de S.Paulo: "Os editores têm que ser gestores culturais. Não podem ser pessoas sentadas numa mesa esperando chegar o próximo melhor livro do mundo. Assim não vão conseguir nada". Sublinho: gestores culturais.
- Num canto da Bienal, colado à diretoria da Câmara Brasileira do Livro, organizadora do evento, painéis faziam referência a obras de diversos grandes autores. Estavam ali Graciliano Ramos, Lima Barreto, Oscar Wilde, Dante, Virginia Woolf, Kafka... É a literatura usada quando alguém quer falar sobre a importância da leitura ou pedir por algo a favor dos livros.
- Há certo cinismo ao evocar Machado de Assis na hora de defender a importância dos livros e pedir ajudas governamentais, mas depois se contentar em vender picaretas da fé, da grana ou das redes sociais.
- Deveria existir uma preocupação real do mercado em fazer com que os leitores em algum momento cheguem a autores como os listados acima, que tenham condições de compreendê-los. E não falo apenas de gente consagrada, mas também de contemporâneos mais exigentes. Depois disso, podem até dizer com propriedade que não gostaram, que preferem aquele romance juvenil.
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