Éric Vuillard: a balela da honra quando guerras e lucros se misturam
"Se os militares tinham de fato praticado a tortura, o bombardeio de civis, a prisão arbitrária, se os parlamentares haviam encorajado a guerra, adotando na tribuna o tom solene dos grandes momentos, os administradores do banco, ao contrário, não tinham oficialmente dito nada. Mantiveram-se, como sempre, distantes, longe dos conflitos, na sombra de seus escritórios, com as capas de chuva amassadas na cadeira, solidamente instaladas na frente de suas pastas de arquivo".
A literatura do francês Éric Vuillard mistura sutileza com incisão. O autor gosta de valorizar detalhes ao recriar cenas importantes que definem o futuro de muita gente. E, sem insinuações, nomeia aqueles que se beneficiaram ou foram coniventes com imoralidades históricas.
Fez assim no ótimo "A Ordem do Dia" (Tusquets), sobre apoios à ascensão de Hitler. Faz assim também em "Uma Saída Honrosa", que acaba de sair pela novata Manjuba, braço de não ficção da Mundaréu (a tradução de ambos é de Sandra M. Stroparo).
Como boa parte do que há de melhor na literatura contemporânea, é difícil jogar o texto de Vuillard numa caixinha única. O tom predominante é o de ensaio. Aqui e ali, no entanto, o autor parece recorrer à ficcionalização na hora de construir pormenores, de valorizar certas passagens.
Realiza esse trabalho com a linguagem enquanto escarafuncha a saída da França da Guerra da Indochina, iniciada após a Segunda Guerra Mundial e precursora da Guerra do Vietnã. Éric alterna o texto entre espaços e momentos diferentes do processo de debandada francês de mais uma carnificina colonialista. É a busca tal saída honrosa.
O autor ora mostra empresas como a Michelin fazendo muito dinheiro no sudeste asiático baseado em abusos sórdidos que ecoam os tempos de escravidão. E ora nos leva para os bastidores das negociatas entre políticos e donos da grana nos salões e restaurantes mais nobres da França.
O leitor familiarizado com momentos importantes da obra de caras como Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa talvez perceba um diálogo com a América Latina em "Uma Saída Honrosa". Em "A Festa do Bode" e "Cem Anos de Solidão", o peruano e o colombiano dão contornos ficcionais a como países ricos se intrometeram - e se intrometem - em nossa região para favorecer seus empresários.
Ao olhar para a Indochina violentada pelos franceses, Vuillard faz algo semelhante, ainda que com uma proposta estética bastante distinta. Não por acaso, sacanagens da United Fruit Company na Guatemala, com direito a orquestrar um golpe de estado que entregou o governo aos militares, são lembradas no livro do francês.
"Estamos em 1º de maio. Nas Tulherias, uma menina vende ramos de lírios-do-vale. Em Genebra, onde foram abertas negociações de paz, enquanto a guerra continua, passeiam nos parques, distraem-se. Mas em Diên Biên Phú, é o fim. Cega-se em qualquer lugar, nos túneis, na beira das trincheiras, rolam-se os mortos para o mais longe possível", lemos.
Fisicamente, é grande a distância entre quem é arrebentado e quem decide pela paz ou pela guerra. É arguto e irônico o olhar de Vuillard para destilar a maneira como a mortandade num lado do mundo atende a interesses de homens de negócio e os políticos com "um problema de protuberância, de bucho". É a economia mesquinha a serviço de alguns poucos abastados que justificam malabarismos contábeis e discursos pomposos para garantir rumos oportunos à guerra.
Nesse sentido, o autor se volta contra instituições que raramente são as primeiras lembradas quando lemos sobre qualquer conflito: os bancos. Lá estão com suas articulações silenciosas, agindo longe dos holofotes, nos conselhos de administração. Sempre com desfaçatez para contabilizar a maior quantidade de lucro possível e ter a certeza de que serão favorecidos a cada nova movimentação. É o que está na essência de "Uma Saída Honrosa".
Brecht, de o que é roubar um banco perto de fundar um banco, sorriria ao ler Vuillard.
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