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Opinião

João do Rio contra as pessoas esnobes

João do Rio é um cara que chama a atenção tanto pela sua literatura quanto pela figura que foi. Vivendo num Rio de Janeiro no início do século 20, soube como ninguém enxergar e registar em crônicas o início da República e a transformação da cidade.

A então capital federal se modernizava tendo Paris como modelo enquanto a população se debatia com as influências inglesas. O Rio crescia a ponto de sua população mais que dobrar em alguns anos.

João perambulava por ruas cheias de tensões e novidades. Frequentava lugares suspeitos, futricava áreas violentas, e também era recebido nos encontros da elite, nos convescotes oficiais. Sabia transitar entre todo tipo de gente, ainda que nem sempre agradasse.

De chapéu, bengala e roupa alinhada, matinha a pose de dândi. Homossexual e negro, lidava com o racismo ao mesmo tempo que eventualmente manifestava visões preconceituosas. Vez ou outra apanhava pelo que era e pelo que escrevia.

Leitor atento de gente como Baudelaire, traduziu e ajudou a difundir a obra de Oscar Wilde no Brasil (dica avulsa: leiam "De Profundis"). Foi reconhecido e festejado em vida. Em 1910, aos 29 anos, virou membro da Academia Brasileira de Letras.

Morreu uma década depois, em 1921, quando teve um infarto fulminante dentro do táxi que o levava até a sua casa, em Ipanema. Teve velório de autoridade e enterro de celebridade. Jornais da época apontam que mais de 100 mil pessoas, mais de 10% dos habitantes da cidade na época, acompanharam o corpo de João do Rio até o cemitério onde está sepultado.

Da mesma forma como o escritor fazia com a cidade, uma boa forma de conhecer a literatura de João do Rio, homenageado da Flip deste ano, é flanando pelos seus livros. Foi o que fiz outro dia, quando pesquei da estante duas reuniões de crônicas: "Cinematógrafo", publicada no ano passado pela Editacuja, e "Gente às Janelas", novidade da Carambaia.

Ao escrever sobre a decadência dos Chopps, reclama de uma cantora que, "esticando as goelas", parecia emitir "um silvo de lancha, à noite, pedindo socorro". Ao perguntar para a garçonete que lhe servira "um copo de groselha acompanhado de um canudinho" se a artista agradava o público diminuto, ouviu: "Qual o que! Até queremos ver se vai embora. O diabo é que tem três filhos".

Numa rinha de galos, conheceu o Frei Satanás, alardeado como animal de fama, e notou como a "massa barbara" urrava enquanto sangue esguichava do olho arrancado de um dos bichos. Relatando encontros, surpreendeu-se com um sujeito que tratava os amigos como "patife" e enquadrou a fúria de um antigo cônsul da Dinamarca que bradava: Meu amigo, mate-se, mas não tenha filhos. É preferível morrer.

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João do Rio subia o morro e perambulava por favelas que começavam a despontar na cidade. Numa dessas, ficou impressionado com o "caminho bordado de águas empoçadas, por onde vão negras maltrapilhas, moleques desnudos, tipos suspeitos, de lenço no pescoço. É impossível imaginar que ali, no centro da cidade, habite gente tão estranha e com vida tão própria".

Mas o que me chamou mesmo a atenção ao passear pelos dois livros de João do Rio foi notar quem em ambos há crônicas diferentes em que o autor vocifera contra o esnobismo. Constava que a cidade possuía uma coleção crescente de esnobes e chegou a listar traços para identificá-los - reverenciar apenas quem já está sendo elogiado pelos outros, por exemplo.

"De todos os idiotas são os mais inofensivos", escreveu João do Rio. Pessoas de ar enfadonho que "acham defeito em tudo porque não podem sorrir, sorriem porque não podem rir, falam baixo porque já não podem gritar".

Mirava um povo que tinha a pretensão de não ser brasileiro e menosprezava tudo o que era feito aqui. Comida brasileira? Só se for em casa. Cerâmica nacional? "Coisas de índios".

Uma gente mais íntima da Europa do que da vida na esquina. Metidos a gentlemans, não conseguiam se comunicar sem usar termos em inglês e se deslumbravam ao encontrar qualquer estrangeiro.

Só consigo pensar nas semelhanças com os nossos dias.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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