Quando cães e gatos se vão: Saramago e Baleia nesse momento de tristeza
A morte nunca responde, e não é porque não queira, é só porque não sabe o que há de dizer diante da maior dor humana.
Personificada como personagem, a morte entra em crise num dos melhores romances de José Saramago. Primeiro deixa de cumprir o seu papel, o que resulta em problemas sociais e também em mudanças no rumo de diversos negócios. Depois se mostra mais introspectiva.
Num grande momento da literatura, acompanhamos a morte postergar o seu dever. Isso por ficar embasbacada com a dedicação de um músico, com seus ensaios, com o empenho para realizar a melhor apresentação possível.
É a sensibilidade da música que encanta aquela que veio buscar o homem e faz com que a história deste se estenda. É a arte que deslumbra a morte e permite que a vida prevaleça, ao menos durante um tempo.
No quarto do sujeito, a morte compreende outro grande prazer da vida. De soslaio, apenas observava o homem deitar, tossir duas vezes e logo adormecer. Mais tarde, o cachorro que antes havia dado duas voltas para se deitar enroscado, levanta-se do tapete e sobe no sofá para se acomodar no colo da estranha.
"Pela primeira vez na sua vida a morte soube o que era ter um cão no regaço", escreve Saramago. Está em "As Intermitências da Morte", livro de 2005 com início célebre: "No dia seguinte ninguém morreu".
Tenho pensado no livro de Saramago nos últimos dias, tempo de luto por aqui. Quem sabe o que é ter um bichinho sobre o colo conhece —ou um dia conhecerá— a tristeza que é quando a morte, jamais intermitente, cumpre com o seu dever.
Esses animais despertam o que há de melhor em nós. São cúmplices com seus afagos. Amorosos no aconchego. Efusivos nos reencontros, mesmo após intervalos brevíssimos. Parceiros fiéis nos melhores e piores momentos. Leais desde o olhar. Amigos.
No regaço que a Belinha deitava para eu coçar sua barriga de pele fininha enquanto ela abraçava a minha mão. Ainda hoje, quase cinco anos após sua partida, posso sentir na ponta dos meus dedos aquela sensação. Também a sinto no peito, numa mistura de saudades e tristeza. Uma tristeza doce. A tristeza de algo bonito que já se foi de nossa vida.
Não sei se passei algum dia dessa última meia década sem pensar na Belinha. Acho que não. Mas são lembranças mais intensas agora, após a partida do Theo, gatinho da família. Acinzentado e de olhos azuis, era carinhoso como poucos e adorava uma coçada no cangote.
Uma pena que a alergia severa fez com que eu demorasse a me aproximar desse gente boa. Mas foram legais os momentos compartilhados. E bonita demais a história trilhada ao lado daqueles com quem viveu desde sempre.
Quando um bichinho assim se vai, choramos também pelos que ficam. Por saber que esse é um luto perene: aprendemos a conviver, jamais o superamos.
Certa vez escrevi que a leitura de Graciliano Ramos nunca se esgotou em mim; o velho Graça é um cara que me lê. Como não poderia deixar de ser, também tenho lembrado dele por esses tempos.
Falo de "Vidas Secas", claro. Da cachorrinha que acompanha a família de filhos não nomeados e ajuda a dar algum alívio à miséria extrema. E que conta com a desengonçada misericórdia humana para aliviar seu sofrimento. Enquanto dorme, Baleia viverá eternamente num mundo cheio de preás.
Ateu, torço para que esse outro mundo, um mundo de preás e reencontros, realmente exista.
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Quero receberTemos Baleia. Sempre teremos Baleia. Desde a juventude é ela que aparece em meu regaço nesses momentos de grande tristeza. Não que torne as coisas mais fáceis. Talvez as deixem apenas mais aceitáveis, compreensíveis.
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