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Opinião

É um problema a série de 'Cem Anos de Solidão' não ser fiel ao livro?

Numa entrevista, as roteiristas Natalia Santa e Maria Camila Brugés contaram alguns caminhos tomados na adaptação de "Cem Anos de Solidão". A série baseada no clássico de Gabriel García Márquez estreará no dia 11 de dezembro na Netflix e apresentará uma história pensada para facilitar a vida do espectador.

Para que ninguém se sinta perdido, colocaram em ordem cronológica toda a saga construída por Gabo. Também mudaram o narrador e criaram livremente diálogos, recurso escasso no romance do colombiano, mas imprescindível num produto comercial de audiovisual. Até aí, tudo bem. Parte do jogo.

Parece, no entanto, que há certo pudor em assumir que romance e série são manifestações completamente distintas e, pela natureza de cada uma, jamais se equivalem. Após anunciarem as liberdades tomadas, as roteiristas trataram de enfatizar: tudo está sendo feito com o objetivo de ser muito fiel ao romance.

Cai na desfaçatez quem quer. Ou você é muito fiel a "Cem Anos de Solidão" ou escangalha a estrutura da narrativa para deixá-la mastigada. A sensação de desnorteio —de estar perdido numa história em que nomes se repetem, cenas se espelham e o tempo parece transcorrer de forma peculiar— é crucial nesse trabalho de Gabo.

Quer mudar isso ao adaptá-lo? Sem problemas. Dizer, no entanto, que ainda assim pretendem permanecer fiéis ao espírito do romance é chamar os outros de incautos e apostar na ingenuidade alheia. Abrir mão da forma literária arquitetada por Gabo e se vender como fiel ao romance é desrespeitar a própria literatura.

É uma questão que, como disse, sequer deveria ter tanta relevância. Serão fiéis ao romance? Claro que não. Nunca são, nem devem. Livro é uma coisa, série é outra, poderiam responder. E estariam cobertas de razão. Não existe isso de uma manifestação artística se sobrepor, substituir ou emular perfeitamente outra arte.

Disse por aí que estava com medo do que viria quando a Netflix anunciou essa série e também o filme baseado no colossal "Pedro Páramo", romance do mexicano Juan Rulfo, um dos livros da minha vida. Era brincadeira.

Não há o que temer. Meio que tanto faz se serão dignas ou não as filmagens baseadas nesses clássicos latino-americanos. Espero que sejam, mas, venha o que vier, a literatura permanece a mesma, grandiosa.

Só há um detalhe. Recomendo ler ou reler "Pedro Páramo" e "Cem Anos de Solidão" antes de assistir à série ou ao filme. Não por essa bobagem de conferir se o que foi levado para as telas segue fielmente os livros, mas por outra questão.

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Alguns volumes de Harry Potter foram os livros que mais li na vida. Muito antes de chegarem às telonas, vivia mergulhado no cotidiano de Hogwarts. Hoje, no entanto, não consigo lembrar como esse mundo se construía na minha imaginação. Todas as cenas que me vêm à mente quando penso nos bruxos foram entuchadas pelos longas.

A força das imagens é gigantesca. De certa forma, colonizam nossa imaginação. Daí o valor de ler Gabo, Rulfo ou qualquer grande livro antes de assistir versões. Só assim para garantir que a sua cabeça construirá um universo próprio e único para essas histórias, sem a influência pesadíssima, nada sutil, de outras mídias.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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