As verdades da ficção: veja como pensam vencedores do Nobel de Literatura
Um dia desses, a Academia Sueca anunciou a vencedora do Nobel de Literatura deste ano. O prêmio ficou com a sul-coreana Han Kang, conhecida principalmente pelo romance "A Vegetariana" (Todavia, tradução de Jae Hyung Woo).
Para quem gosta de acompanhar não só o que escrevem, mas também o que pensam os escritores reconhecidos pelos suecos, a CaixaForum Plus tem uma série valiosa. Falo de "Palabra de Nobel", na qual o jornalista Xavi Ayén e o fotógrafo Kim Manresa visitam e entrevistam vencedores da distinção.
Apesar de ser uma plataforma espanhola, os episódios da série contam com o português entre as opções de legenda. Nessa primeira temporada, a dupla ouve quatro nobelizados, todos homens: o turco Orhan Pamuk (vencedor de 2006) o francês Le Clézio (que levou em 2008) o tanzaniano Abdulrazak Gurnah (de 2021) e o norueguês Jon Fosse (de 2023).
O cenário onde Fosse vive, nos arredores Bergen, remete imediatamente às florestas nevadas e aos fiordes encontrados em livros como "Brancura" e "A Casa de Barcos" (Fósforo, ambos traduzidos por Leonardo Pinto Silva). Já a relação do autor com a música ajuda a explicar o texto hipnótico de seus romances. Guitarrista assumidamente medíocre, o autor carrega para a literatura a obsessão pelo ritmo.
Fosse também fala sobre mistérios. Ao comentar a criação, diz sentir que escreve a partir de algo que está fora de si. Como escritor, o desafio seria captar o que paira antes que essa coisa desapareça. Autor que vê proximidade entre a escrita, a poesia e a oração, também dono de uma obra que dialoga com a mitologia cristã, sente-se atraído pelos enigmas da fé.
"Se quisermos, podemos dizer que toda a Bíblia é uma ficção. Certo. Mas se a ficção for boa, contém uma grande verdade. Penso que a Bíblia também contém uma grande verdade, mesmo que seja considerada pura ficção".
Com Gurnah, é valioso o momento em que ele procura pelas distinções entre simplesmente escrever e ser, de fato, um escritor. Na busca pela voz narrativa, considera que é crucial a preocupação em convencer bons leitores.
"Torna-se escrita quando estamos cientes de que nossos escritos estarão sujeitos ao escrutínio de outras pessoas, que provavelmente criticarão e terão de ser persuadidas. Quando escrevemos para nós, podemos compadecer de nós mesmos tanto quanto quisermos. Mas quando escrevemos, temos de pensar em transmitir algo, possivelmente a um leitor crítico".
Gurnah lembra dos tempos de turbulência civil e política em Zanzibar que o levaram a rumar ainda jovem para a Inglaterra, onde chegou como imigrante ilegal. Aspecto crucial de livros como "Sobrevidas" (Companhia das Letras, tradução de Caetano Galindo), o autor fala sobre as muitas facetas do colonialismo na conversa para a série.
Desde a década de 1960 que Gurnah vive na Cantuária, onde se formou, estabeleceu-se como intelectual e fez carreira na universidade. "Minha casa está na Inglaterra, mas Zanzibar também é meu lar", crava ao se assumir como um cidadão que transcende fronteiras físicas.
Mesmo se não gostar ou não conhecer a literatura de Pamuk, vale dar atenção para o episódio com ele, nem que seja para se embasbacar com a vista do apartamento onde o turco mora. Dali se tem uma visão para o Bósforo que o autor diz ser a mais bonita de Istambul. E, olha, talvez existam outras tão belas quanto, mas é difícil superar o que vemos de sua sacada.
Pamuk lembra ter crescido numa família que valorizava a matemática, o raciocínio e a criatividade. O pai, dono de uma biblioteca que lhe foi fundamental, considerava que os homens realmente importantes não eram militares, líderes religiosos ou políticos, mas escritores como Camus e Faulkner.
A tensão de se viver num país entre a Europa e a Ásia, entre a manutenção de antigas tradições e a paulatina ocidentalização dos costumes, entre os acenos para a comunidade europeia e os ecos do império otomano são preocupações que Pamuk carrega para sua literatura.
Em que pese ter se tornado uma figura relevante ao se posicionar sobre a cada vez mais autoritária política turca, sublinha a recusa de escrever para fazer propaganda ideológica. É sempre de se admirar essa rigorosa barreira que separa a figura pública —com suas ideias e discursos— do que um autor leva para os seus livros, para a literatura que produz.
Ainda me falta estar à sala com Le Clézio. Preste ou não, a indicação de "Palabra de Nobel" seguirá de pé. E não só. A CaixaForum Plus tem um bom acervo de programas sobre literatura, sempre gratuitos. Tanto que já tinha indicado por aqui a série "Booklovers", apresentada por Jorge Carrión.
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