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Antonio Cicero: a dignidade de poder decidir a hora da própria morte

"Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade."

A morte acontece em ondas. Às vezes há a iminência. Daí chega a notícia. Depois começamos a digerir a notícia. Em seguida, mais detalhes nos ajudam a compreender a perda.

Ficamos sabendo da partida de Antonio Cicero na manhã desta quarta-feira (23). A forma como o poeta escolheu morrer já impacta e comove.

Saiu do Brasil e foi para Paris realizar a derradeira despedida, informa a Academia Brasileira de Letras (ABL). Depois, seguiu para a Suíça: a eutanásia ou o suicídio assistido era o objetivo final da viagem.

Em outras palavras, procurou por profissionais que pudessem dar um fim aos seus dias num país onde o procedimento é legalizado. É de uma grandeza extrema escolher a hora da partida e ter apoio para tal, sem precisar recorrer à violência contra si ou a alternativas pouco seguras e nada acolhedoras.

É o tipo de assunto que deveria estar em discussão no Brasil, não se tal político acredita ou não em deus, segue ou não papagaiadas de pastor. Poder definir a hora da própria morte deveria ser um direito fundamental de qualquer ser humano.

Aos 79 anos, Cicero foi em busca desse direito. E deixou uma carta tão bela quanto dura para explicar a chegada da finitude aos amigos, o que deixa tudo ainda mais comovente.

Sofria da Alzheimer. Já não se lembrava de acontecimentos recentes nem reconhecia pessoas com as quais conviveu. Também não conseguia mais "escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia". Não conseguia se concentrar nem mesmo para fazer "a coisa de que mais gostava no mundo": ler.

Porém, ainda estava lúcido o bastante para perceber sua "terrível situação". Uma condição que o deixava envergonhado ao reencontrar os amigos, "uma das coisas - senão a coisa - mais importante" da sua vida.

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Assim Cicero finalizou sua despedida: "Como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade. Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!"

Divulgada pela ABL, da qual o autor era imortal desde 2017, é uma carta que condiz com a imagem construída por Cicero. Difícil alguém que não o admirasse pela elegância, pela ternura e pela gentileza. E pela inteligência, claro.

No final da década de 1960, exilado durante a ditadura militar, rumou para Londres, onde concluiu sua formação em Filosofia. Fez a pós nos Estados Unidos. Aprofundou-se no grego e no latim, o que lhe deixou mais íntimo de trabalhos de autores como Homero, Horácio e Ovídio.

Teve uma obra filosófica. Também foi crítico literário e poeta. Seus versos estão em livros como "Guardar" e "Porventura", ambos publicados pela Record. A Companhia das Letras já anunciou que prepara para o ano que vem seu último livro de ensaios, "O Eterno Agora".

Algo sempre louvável, soube conciliar a inegável erudição com uma obra assimilada e aplaudida por um público gigantesco.

E aqui falo especialmente da faceta letrista - ou de poeta com poemas pensados para a canção - de Cicero. Difícil achar alguém pelo Brasil que nunca tenha cantado alguma de suas composições.

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Exemplos? "O Último Romântico", de Lulu Santos, nasceu de sua caneta. Muitas músicas de gente como João Bosco, Waly Salomão e Adriana Calcanhotto, também. Mas nesse campo Cicero é lembrado principalmente pela parceria com a sua irmã mais nova, a cantora Marina Lima.

Pensei muito numa canção da dupla após o resultado final das eleições de 2022. Num trechinho bem breve de "Fullgás", para ser mais específico: "Você me abre seus braços/ E a gente faz um país".

Vencido Bolsonaro e com a expectativa dos milicos novamente se distanciarem do poder, haveria chance de voltarmos a pensar isso daqui como um país? Foi o que Cicero vislumbrou na canção lançada em 1984, na iminência da nossa destrambelhada redemocratização. As coisas seguem difíceis.

Outros sucessos da artista foram escritos pelo irmão. Menciono apenas mais um, que me leva novamente à carta repleta de dignidade deixada pelo poeta. Não há como revisitar "À Francesa" e não pensar gesto final de Cicero ao se deparar com versos assim:

"Meu amor se você for embora/ Sabe lá o que será de mim? // Meu amor não vai haver tristeza/ Nada além de fim de tarde a mais/ Mas depois as luzes todas acesas/ Paraísos artificiais// E se você saísse à francesa/ Eu viajaria muito, mas muito mais/ Se eu te peço para ficar ou não// Meu amor eu lhe juro/ Que não quero deixá-lo na mão/ E nem sozinho no escuro// Mas os momentos felizes/ Não estão escondidos/ Nem no passado e nem no futuro".

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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