Misericórdia: Lídia Jorge e a busca pela vida quando a morte se aproxima
É no meio da noite que a noite aparece. Uma noite que está sempre à espreita e sabe diferenciar o que lhe é dito dos verdadeiros desejos de uma pessoa. É uma noite incômoda, perturbadora. Segue gente como um animal selvagem segue a presa.
E faz perguntas. Onde fica Baku? Sabe dizer-me o que é o amor? Há noites em que dona Alberti duela com essa noite indesejada e inescapável, cheia de significados.
Entra em atrito com a noite enquanto vive num lugar onde a morte está sempre por perto. O mundo ficou lá fora. Ambulâncias regressam raramente com o passageiro vivo para ali. O nome é bonito, Hotel Paraíso, mas não há nada de idílica na rotina num asilo.
Angústia e melancolia são duas das marcas do lugar, ainda mais apartado por conta da pandemia. Enquanto dona Alberti tenta contornar a noite, também busca se entender com os próprios pensamentos numa cabeça já não tão confiável quanto outrora.
Intimidade e a garantia de um espaço pessoal também parecem ser coisas de outro tempo, raridades no Hotel Paraíso. "Não há mais nada que seja só meu, nem o meu corpo, nem o meu espírito."
Dona Alberti é a protagonista de "Misericórdia", romance de Lídia Jorge que acaba de chegar no Brasil pela Autêntica Contemporânea. Uma das escritoras portuguesas mais importes em atividade, inspirada pela fase final da vida de sua mãe que Lídia constrói uma narrativa de admirável sensibilidade e notável beleza. É uma das grandes leituras do ano por aqui.
Como não poderia deixar de ser, há tristeza e certo saudosismo em diversas passagens de uma história assombrada pela morte, com uma série de sujeitos díspares vivendo seus últimos dias. Mas há também muita vida, muita busca por alguma alegria, por momentos de felicidade, por aventuras que sigam dando sentido à existência neste universo.
Entre brincadeiras, hábitos rotineiros e atividades extraordinárias que muitas vezes soam como ciladas, os residentes do Hotel Paraíso seguem com a vida em sua complexidade. E aqui ressalto outro mérito de Lídia: entregar aos leitores um romance povoado por personagens cativantes.
São idosos que buscam pela dignidade em meio à decadência, que não se conformam com suas condições, que perseguem mais alguma fagulha daquilo que sempre lhes alegraram. Enquanto a vida persiste, as transformações nunca cessam. Muitas vezes relegados pela família, constroem novas amizades, novos elos de afeto e enxergam nas descobertas dos mais jovens uma oportunidade para expandir suas experiências.
Também cometem atos estúpidos e odiosos. São capazes de ofender, de maltratar e de matar por capricho. Destilam homofobia e xenofobia principalmente na relação com os cuidadores. Uma das camadas de "Misericórdia" é como portugueses, especialmente os mais velhos, se relacionam com imigrantes latino-americanos e de origem árabe.
É um romance com pessoas na iminência da transição definitiva de suas vidas e que também vivenciam mudanças drásticas na realidade, principalmente quando a pandemia de covid-19 faz com que a reclusão se torne ainda maior. Nesta altura, Lídia tropeça em algumas comparações descabidas e em passagens arrastadas que prejudicam o ritmo da segunda metade da obra.
Dona Alberti tem familiares por perto. Com a filha, discute sobre o trabalho e a arte. Se incomoda com os livros publicados pela moça. Lhe aconselha a mudar os finais, escrever de outra forma para, quem sabe, ter mais leitores. Que passe a contar histórias dos fortes, dos heróis, daqueles que vencem.
Se talvez falte a Alberti uma compreensão maior do que pode ser belo na arte, é justamente a beleza que ajuda a dar cor a parte de seus dias no Hotel Paraíso. Chega a pedir: "Inimiga morte, detém-te aí, na porta de entrada, já que a imagem do sargento vem acenar com a vida".
E esse é um dos maiores méritos de "Misericórdia". Mostrar como a beleza, o desejo, o sexo (estes numa investida bem-vinda e talvez surpreendente da autora) nos ajudam a manter a noite distante. Nos levam a fazer o possível para postergar a última visita, o momento de sucumbirmos à escuridão.
"A beleza, venha de onde vier, quando não cura e não salva, ao menos ilude a alma." E já é muito.
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