Sonho, fantasia e realidade: Cartarescu é um autor que merece sua atenção
De alguns anos para cá, passei a prestar atenção em como o nome de um escritor romeno é capaz de aguçar a mente, tirar um sorriso e fazer brilhar os olhos de alguns ótimos leitores. Falo de Mircea Cartarescu.
Não que o cara tenha uma imensa legião de fãs no Brasil, longe disso. Mas é de se aplaudir a qualidade dos admiradores que conquistou por aqui. Leitores que não perdem a oportunidade de dizer a outros: dê uma chance, leia Cartarescu. Não gosto muito da expressão, mas é o que costumam chamar de autor de culto.
Com seus longos parágrafos, rupturas temporais, reflexões sobre a própria literatura e jogos labirínticos, Cartarescu costuma ser considerado um autor difícil. Espero que nenhum leitor se sinta paralisado diante de uma mesquinhez como essa.
O romeno exige dedicação. Atenção para entender o seu universo. Participação para interpretar suas histórias cheias de áreas cinzentas e mensagens nas entrelinhas. Exigir que o leitor não seja um mero palerma prostrado diante do livro jamais deveria ser um problema.
Na prosa de Cartarescu, memória, fantasia, sonhos e delírios mais do que se misturam. Parece não existir distinção ou hierarquia entre esses elementos para que se forme o que entendemos como real.
Numa entrevista recente para o jornalista Ruan Gabriel, Cartarescu disse ver a vida como um sonho. Cabe ao cérebro produzir nossas vidas noturnas e cotidianas. Então, sonhos lúcidos de diferentes pessoas se misturam no dia a dia, criando assim a "ilusão de um mundo comum".
"Não faço distinção nos meus livros entre o que é real e o que é inventado, imaginado, sonhado. Minha maior satisfação é fazer uma gradação lenta entre real e fantástico, de modo que o leitor não perceba ter deixado seu mundo corriqueiro para adentrar num mundo estranho e fabuloso. Para ser um bom escritor de literatura fantástica, é necessário primeiro ser um ótimo escritor realista", disse Cartarescu.
Não causa surpresa saber que Kafka, Borges, Gabo e Cortázar —autores que transitam com maestria por limites tênues, às vezes inexistentes, entre o real, o onírico e o fantástico —estão entre as influências mais evidentes do romeno. Não só. Há também acenos para gente como Poe, Proust e o húngaro Ferenec Molnár de "Meninos da Rua Paulo".
Poderia aproveitar que frequentemente Cartarescu é apontado como um dos favoritos ao Nobel de Literatura para escrever sobre ele. Mas a desculpa é outra: acaba de ser publicado no Brasil "Solenoide", catatau de quase 800 páginas editado pela Mundaréu, com tradução de Fernando Klabin.
Qualquer tentativa de condensar o romance numa breve apresentação está fadada ao fracasso. Talvez até deponha contra a obra, pois não está no enredo seu grande trunfo. Mas vamos lá.
Professor de ensino público e escritor arruinado após ter seus versos achincalhados num sarau, o narrador repassa momentos de sua vida enquanto fustiga feridas, compartilha desgostos e expurga frustrações.
Faz isso morando numa curiosa casa em forma de navio construída por um sujeito extravagante sobre um gerador de campo magnético. Fica na Bucareste do período comunista, cenário preferido do autor. Com o virar das páginas, "Solenoide" ergue um monumento à desilusão, à descrença, à amargura, ao ressentimento e ao autoflagelo. Um trecho:
"Em centenas de noites de insônia depois, ruminei o mesmo roteiro rocambolesco: persegui e puni todos os que avacalharam meu poema e destruíram minha vida. Ao longo de tantos anos, porém, tenho me vingado sobretudo de uma única criatura que, travada e impotente, mero modelo anatômico vivo, feito para tortura, foi confiada a minhas mãos para sempre: eu mesmo."
Não digo mais porque, apesar da empolgação com a leitura, estou ainda no começo de "Solenoide", ali pela página cento e tanto. Fico tranquilo para escrever a respeito da qualidade de Cartarescu principalmente pela leitura de seu livro anterior, "Nostalgia" (também Mundaréu, tradução do Klabin), talvez a melhor porta de entrada ao universo do autor.
É daqueles livros que nos fazem agradecer por sermos leitores. São cinco histórias diferentes que, segundo a classificação do próprio autor, integram um romance. Podemos acreditar nele, mas também podemos pensar na obra como uma sequência de contos ou novelas que de alguma forma se resvalam ou se entrelaçam pela ambientação, pelos personagens, pelos temas.
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Quero receberNas histórias de "Nostalgia" encontramos as brincadeiras e as maldades da infância, a tentativa de reviver alguma fagulha de um bom momento, a busca de sentidos para a existência, um bom tanto de desolação e resignação...
Na primeira história, "O Roletista", a mais breve, o leitor é levado ao submundo de Bucareste, onde apostas clandestinas acontecem. Confiante de sua infalibilidade, um sujeito que arrisca a vida na roleta russa passa a aumentar seu valor de mercado ao colocar cada vez mais balas no tambor do revólver que, puxado o gatilho, pode dar cabo de sua vida.
Se estiver desconfiado de mim, leia apenas "O Roletista". Será o suficiente para notar como Cartarescu é um autor que merece nosso tempo.
Ou, talvez, seja nosso tempo que mereça Cartarescu.
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