Felipe Neto: 'Não podemos tratar o livro como uma coisa elitizada'
"Não podemos tratar o livro como uma coisa elitizada, intocável. A literatura não tem que ser tratada como hábito, a leitura tem que ser tratada como hobby e paixão. A gente precisa vender isso para as pessoas: que nos livros elas vão encontrar prazer".
Conheço o trabalho de Felipe Neto já faz uns 15 anos, desde de que ele despontou com os vídeos do canal Não Faz Sentido. É impossível alguém que trabalha com internet não acompanhar, de alguma forma, a sua trajetória.
Aos 36 anos, hoje, seu canal no YouTube conta com mais de 50 milhões de inscritos e é apenas uma das atividades de Felipe, que se transformou num empresário com interesse em diversas áreas, principalmente, da comunicação.
Me chamou a atenção como, há alguns anos, Felipe passou a tratar da literatura em suas redes. A falar de livros, de autores, compartilhar leituras, provocar e pautar discussões literárias? Tanto que recentemente criou o Clube do Livro FN.
O lançamento de "Como Enfrentar o Ódio" (Companhia das Letras), sobre sua atuação e suas visões no combate à extrema direita, foi a desculpa para convidar Felipe para o papo que pode ser escutado inteiro no podcast da Página Cinco. Separei aqui alguns destaques da entrevista.
Sim, falamos um pouco do título que saiu pela Companhia das Letras e fez de Felipe Neto uma das atrações da Flip deste ano. Mas conversamos, principalmente, sobre leitura, sobre como certos autores podem forjar e mudar nossa visão de mundo, sobre ser leitor e sobre caminhos para que outras pessoas se encantem com os livros.
Mudança de visão do mundo
"A gente sempre vai puxar o viés de confirmação para tentar fazer com que nossa vida seja mais fácil. Por mais que fosse um leitor, era muito um leitor de ficção. E não conseguia buscar na ficção algo para confrontar as minhas ideias, porque eu queria acreditar naquilo que tinha sido ensinado desde a infância: que a esquerda é a maldade do mundo, quer concentrar o poder, quer destruir a família, a religião?
O que começa a me deixar mais confuso e com mais perguntas é quando passo a ler mais livros de não ficção, que contam a história, os acontecimentos, apresentam uma visão diferente daquela que eu tinha. A ficção é muito importante, sem dúvida nenhuma, é a forma que temos de enxergar o mundo pela ótica de outras pessoas, mas a não ficção vai ser muito importante na desconstrução de ideias".
Chomsky e Eduardo Galeano
"O que mais me abriu os olhos foram dois autores: o Chomsky e o Eduardo Galeano, pela leitura fácil, a forma de contar a história de uma maneira muito direta, sem muito floreio. Fiquei muito preso tanto em 'As Veias Abertas da América Latina' quanto na obra de Chomsky.
'Veias Abertas' foi o mais importante de todos. Quando você conhece a história da América Latina e de fato entende o papel dos Estados Unidos, principalmente, no pós-Segunda Guerra, você começa a ter uma compreensão verdadeira das origens dos nossos problemas".
Grana compra tempo para ler
"Esse é um dos grandes problemas no cerne do nosso sistema econômico. O capitalismo tira o tempo do povo trabalhador e dá esse tempo para a elite. Eu faço parte dessa elite. Eu enriqueci. E, quando você enriquece, o capitalismo é extraordinário para você. E quem enriquece normalmente esquece como era antes de ser rico. Sei como é o tempo para o pobre e para o rico. Tenho condição de pagar para ter muito mais tempo do que o trabalhador ou a trabalhadora. Então, pra mim, sobra bastante tempo para ler, é só uma questão de prioridade".
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"É muito recompensador ver o pessoal começando a ler ou lendo mais. Isso é o mais fantástico. Muitos jovens começando a ler pela primeira vez, muita gente que tinha parado de ler pelo vício em tela, vício em redes sociais, voltando a ler. É um dos projetos que mais me orgulho".
Chega de elitização
"Não podemos tratar o livro como uma coisa elitizada, intocável. A literatura não tem que ser tratada como hábito, a leitura tem que ser tratada como hobby e paixão. A gente precisa vender isso para as pessoas: que nos livros elas vão encontrar prazer.
Na Flip, percebi que existe sim uma certa elite que quer continuar fazendo dos livros um clubinho fechado, às vezes até para dar sentido para a própria vida".
Mudança de opinião
"Eu mudo de opinião sobre determinado assunto normalmente apenas uma vez. Vou estudar, entender e, se trocar de opinião, passo a defender aquilo que entendi como certo. Foi isso com relação à extrema direita, em relação às bets. Eu erro, eu percebo, eu corrijo e passo a enfrentar o problema".
Internet é uma ferida inflamada
"É muito diferente o impacto que tem um ensaio sobre 'Frankenstein', por exemplo, para falar das curiosidades do livro, sua importância histórica, e uma crítica a 'A Biblioteca da Meia-noite'. Não há qualquer nível de comparação na quantidade de engajamento.
A internet infelizmente é muito reativa e inflamada, é como uma grande ferida inflamada. E as pessoas ficam jogando sal para ver aquilo borbulhar".
Leitores como cocriadores dos livros
"O que vou aprendendo com as próprias pessoas é fascinante. Elas vão mostrando interpretações que eu não tinha tido, não tinha percebido. Não tento mostrar para ninguém que a minha interpretação é a correta.
Nisso as pessoas começam a perceber que a leitura é a única arte em que você é cocriador. Você cria junto com o autor aquela obra que está ali. O autor só te fornece as palavras, quem crias cenas é você, quem cria a interpretação é você. A leitura é a única arte em que aquele que consome também cria junto".
Recomendação de livro é coisa séria
"Para fã, nunca recomendo livro. Recomendar livro é uma coisa um pouco mais séria do que parece. Se alguém vê um filme e não gosta, a pessoa vai ver outro filme. Agora, se você recomenda um livro e esse livro não conversa com aquela pessoa, você tem chance de causar um dano. A recomendação literária é um pouco mais séria. Sem saber a idade da pessoa, o que ela busca num livro, o que motiva essa pessoa, não costumo recomendar livro".
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