Diário aproxima leitor da carnificina provocada por Israel na Palestina
"Os mais jovens inventaram uma maneira nova e inteligente de garantir que suas histórias sejam contadas, ou ao menos lembradas, mesmo se forem estraçalhados por um míssil israelense. Para garantir que seus corpos serão reconhecidos, eles começaram a escrever o próprio nome, com canetinha, nos braços e pernas. Estão compartilhando essa prática nas redes sociais. Alguns escrevem até o número de telefone dos familiares para que possam ser informados da morte."
Ler "Quero Estar Acordado Quando Morrer - Diário do Genocídio em Gaza", de Atef Abu Saif (Elefante, tradução de Gisele Eberspächer), é acompanhar como o mais recente massacre de Israel sobre os palestinos avançou ao longo dos primeiros 85 dias de uma carnificina que já dura mais de ano.
Convidado da última edição da Flip, Abu Saif é escritor e já ocupou o cargo de ministro da Cultura da Autoridade Nacional Palestina. Tomava banho de mar quando vieram os primeiros ataques israelenses. Pensava que seria só mais alguns mísseis a detonar parte do lugar onde pessoas tiveram que se acostumar a viver com as armas de Israel apontadas para si. Estava enganado.
Os ataques não cessaram com o passar dos dias. Pelo contrário. Com ondas tétricas de violência, destruição e morte, superaram as piores expectativas. Pelo diário de Abu Saif presenciamos cidades sendo varridas do mapa e cidadãos indefesos perdendo suas casas, suas esperanças, suas vidas.
São famílias que dormem em lugares diferentes para, em caso de ataque, não morram todos de uma só vez. Cabe ao acaso fazer com que alguns escapem dos bombardeiros. Outros assumem o desejo de, pelo menos, morrer inteiro, sem ter o corpo destroçado. Há quem pense já estar morto.
Conforme o número de amigos e familiares assassinados só aumenta, a vida, enquanto resiste, passa a ser regida pela busca por comida, água e abrigo. Na rua, um pedaço de cérebro cercado por gotas de sangue no chão impressiona. Com o avançar das semanas, entretanto, tornam-se mais frequentes cenas dantescas, como uma estrada ladeada por corpos apodrecendo, cabeças degoladas, pedaços de gente.
"Hoje em dia, é perigoso ficar na janela, pois os atiradores de elite podem acertá-lo por diversão", relata o autor numa das entradas do diário. É uma passagem que simboliza a perversidade dos militares inimigos, que muitas vezes parecem matar e destruir simplesmente porque querem, porque o poder lhes permite.
É preciso ser muito cruel e indiferente para ver as notícias sobre Gaza e não questionar: como pode o mundo permitir um horror desses? O autor faz a mesma pergunta para depois demonstrar a legítima revolta com a inação da ONU, do governo de outros países, da imprensa internacional.
Faz falta termos contato mais próximo com as histórias das pessoas assassinadas, detonadas, explodidas na Palestina. Conhecer os seus sonhos, seus amores, os planos interrompidos pelos fuzis e foguetes ou acossados pela maneira como Israel os isola do restante do mundo.
A arte, como sempre, é um caminho para nos aproximarmos. "Quero Estar Acordado Quando Morrer" faz companhia a uma biblioteca sobre a Palestina já publicados no Brasil e que merecem a atenção dos leitores.
Penso aqui nos bons romances "Detalhe Menor", de Adania Shibli (Todavia, tradução de Safa Jubran), "Homens ao Sol" (Tabla, também traduzido por Safa) e "Retorno a Haifa" (Tabla, tradução de Ahmed Zoghbi), ambos de Ghassan Kanafani, autor cuja trajetória se confunde com a própria história recente da Palestina.
Há também o ótimo "Tornar-se Palestina", da chilena Lina Meruane (Relicário, tradução de Mariana Sanchez), que está para ganhar nova edição. É uma mistura de ensaio com narrativa de viagem da busca da autora pelas suas origens familiares. Há no livro uma camada reveladora sobre quão difícil é viver num estado cercado e submetido às arbitrariedades e caprichos de outro muito mais poderoso.
"Diários de Gaza - A Memória É Uma Casa Indestrutível" (Tabla, tradução de Rima Awada Zahra) acabou de sair e parece ser digno de um olhar atento. Nele, artistas, escritores, professores e agentes culturais relatam suas vidas durante o pandemônio que segue acontecendo.
Há mais, bem mais livros. Muitos deles estão na conversa sobre literatura árabe contemporânea que tive no meio do ano com a tradutora e pesquisadora Safa Jubran para o podcast da Página Cinco.
"Por toda a Faixa, as pessoas se sentem traídas e abandonadas. Ninguém parece se importar com a gente. Ninguém veio nos resgatar, ninguém ofereceu apoio. Israel está aplicando todas as táticas militares e cometendo sucessivas atrocidades sem objeção de ninguém. Fomos abandonados e temos de encarar e aceitar nosso destino, sem podermos opinar. Temos de sofrer em silêncio. Não importa o que sentimos ou pensamos, ninguém nos ouve. O abandono é a nossa condição."
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Quero receberO desabafo ecoa a tragédia de quase oito décadas que atormenta gerações de palestinos marcadas pelo conflito —impossível chamar de guerra algo com tanta disparidade de poder— contra Israel. Ciente de que as perspectivas para o futuro não são boas, Abu Saif olha para a história: "O que resta é a memória, e parte de nossa luta para permanecer vivos é assumir o compromisso de não esquecermos o que aconteceu".
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