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Opinião

Ainda não leu 'Cem Anos de Solidão'? Leia! E se já leu, releia!

Nesta quarta (11) estreia na Netflix a série baseada em "Cem Anos de Solidão". Já compartilhei minhas desconfianças sobre a adaptação, mas aproveito os holofotes voltados para o clássico de Gabriel García Márquez para enfatizar o que é essencial.

Nunca leu "Cem Anos de Solidão"? Leia. Já leu? Releia. Tentou ler e não conseguiu? Pois volte ao livro e tente de novo. Se necessário, tente de novo, de novo e de novo. Até se entender com aquele emaranhado de Arcádios, Aurelianos e Buendías. Confie: valerá a pena.

É uma leitura que exige dedicação do leitor, o que jamais pode ser visto como problema. Eu mesmo só fui me entender com "Cem Anos de Solidão" lá pela quarta, quinta tentativa, como já contei. Todo leitor merece perambular por Macondo e decifrar, ainda que em partes, o monumento de Gabo.

"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo", lemos nas primeiras linhas da história, aqui traduzida por Eric Nepomuceno em edição da Record.

A partir disso, somos levados para um livro que nasceu como metáfora da nossa região e passou a se confundir com a própria história da América Latina. Como entender este nosso canto do mundo sem recorrer ao clássico de Gabo? É a obra maior do autor que venceu o Nobel de Literatura de 1982 pela maneira como talhou o fantástico e o real para criar uma literatura imaginativa, que reflete a vida e os conflitos de um continente.

Estão pelas páginas de "Cem Anos de Solidão" muitas das questões que ainda nos perturbam. As guerras civis e a truculência dos militares, sempre prontos para defender quem já tem poder demais. As disputas pela terra e a natureza transformada em plantação ou pasto para abastecer países ricos. O povo acossado conforme os interesses do colonizador da vez.

Há quem se apegue demais às borboletas voando, às flores caindo, às chuvas eternas ou a qualquer criança com rabicho de porco para constatar os elementos do realismo mágico na obra de Gabo e tratá-la de uma maneira pitoresca, quase pueril. Bobagem.

Sim, pelas páginas de Gabo encontramos como os elementos fantásticos permeiam o real e ajudam muita gente a criar sua própria compreensão da vida. Mas não é só isso. Estamos diante de um romance brutal, violento, profundamente político, esfera onde o que chamamos de realismo mágico também dá as suas caras.

"Acho que particularmente em 'Cem Anos de Solidão' eu sou um escritor realista, porque creio que na América Latina tudo é possível, tudo é real", diz Gabo no papo com Mario Vargas Llosa publicado em "Duas Solidões - Um Diálogo Sobre o Romance na América Latina" (Record, tradução de Eric Nepomuceno). O fantástico está arraigado a diversas formas latino-americanas de compreender e interpretar o mundo, sublinha o colombiano.

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Um exemplo. Num dos momentos mais marcantes do romance, lemos: "'Com certeza foi um sonho', insistiam os oficiais. 'Em Macondo não aconteceu nada, nem está acontecendo, nem acontecerá nada nunca. Este é um povo feliz'. Assim consumaram o extermínio dos chefes sindicais".

E é o próprio Gabo, que criou a cena inspirado por um episódio histórico da Colômbia, quem diz: "O que acontece é que, na América Latina, por decreto se esquece um acontecimento de uns três mil mortos... Isso, que parece fantástico, foi tirado da mais miserável realidade cotidiana".

Sim, soa fantástica a nossa mais miserável realidade cotidiana.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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