Perseguições, sacanagens e hype: o ano da literatura em dez pontos
Tombo
Em setembro, parte importante do mercado editorial comemorou o sucesso da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. O pavilhão lotou, a quantidade de visitantes foi mesmo ótima, editoras venderam para caramba. Eventos assim iludem, dão a impressão de que há um interesse imenso de um público gigantesco pelos livros e pela leitura.
Pouco depois, no final de novembro, números mostraram o cenário real. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil apontou: o número de leitores no Brasil despencou, a repulsa aos livros aumentou. Não há, creio, notícia mais importante para o setor em 2024 que essa tristeza.
Preço
E a pesquisa também mostrou que o preço do livro não é apontado como um grande entrave para a leitura. Apesar disso, discussões sobre quanto leitores estão pagando pelas novidades pipocaram ao longo do ano.
Perseguições
Mundo afora, livros seguem sendo perseguidos em países teoricamente democráticos. A fogueira metafórica segue acesa no Brasil. Nos Estados Unidos, há cada vez mais títulos banidos de bibliotecas, confirmando que a ideia de terra da liberdade é pura papagaiada.
Quem aderiu à nefasta moda em 2024 foi a Argentina, onde começaram a rolar perseguições a livros contemporâneos adotados por escolas. Falo de obras como "Cometerra", de Dolores Reyes, e o excelente "As Aventuras da China Iron", de Gabriela Cabezón Cámara, ambos publicados aqui pela Moinhos.
Sacanagem
A obra de Graciliano Ramos entrou em domínio público no dia 1º de janeiro. Em meio à enxurrada de edições de "Vidas Secas", a Todavia lançou "Os Filhos da Coruja", poema que Graciliano tinha escolhido manter na gaveta. Ricardo Ramos, neto do escritor, considerou a publicação uma sacanagem da editora.
Não cabe a mim falar em sacanagem com Gabriel García Márquez. Mas, poxa, bem que os herdeiros poderiam ter respeitado a vontade de Gabo e mantido "Em Agosto nos Vemos" longe das livrarias. É bastante fraco o livro póstumo do colombiano, publicado pela Record em março.
Consternação
Pelo menos dois episódios envolvendo escritores brasileiros provocaram grande consternação. Em abril, Roseana Murray foi atacada por cachorros, ficou bastante machucada e precisou ter um braço amputado. Em "O Braço Mágico" (Estrela Cultural), livro que lançou após episódio, a autora mostrou o valor da imaginação.
O poeta e ensaísta Antonio Cicero, por sua vez, emocionou muita gente com a carta de despedida que deixou antes de dar cabo da própria vida por meio de um suicídio assistido. Definhando com o Alzheimer, se queixou, dentre outras coisas, de não conseguir se concentrar nem mesmo para fazer "a coisa que mais gostava no mundo": ler.
Em abril, o grande Ziraldo, pai do Menino Maluquinho, que se foi. E em dezembro, Dalton Trevisan partiu. Faltou pouco tempo para o Vampiro de Curitiba, um dos melhores contistas de nossa história, chegar aos cem anos.
Enchente
Ainda no campo das tristezas, o povo do livro foi bastante impactado pelas enchentes no Rio Grande do Sul. Livrarias ficaram submersas, editoras foram alagadas, autores perderam tudo ou quase tudo o que tinham, bibliotecas inteiras tiveram que ser descartadas. Depois que a água baixou, diversas iniciativas pipocaram para ajudar leitores do estado.
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O francês Édouard Louis, autor de livros como "Quem Matou Meu Pai" e "Lutas e Metamorfoses de uma Mulher" (Todavia), um dos nomes mais associados hoje à autoficção, foi muito incensado após sua vinda para a Flip. Do que li, não me empolgou.
Só para ficar entre os convidados internacionais da Festa de Paraty deste ano, vale mais a pena dedicar uns dias à literatura da já citada Cabezón Cámara e do senegalês Mohamed Mbougar Sarr. "A Mais Recôndita Memória dos Homens" (Fósforo) foi uma das grandes leituras do ano por aqui.
Surpresa
Foi uma grande surpresa a Academia Sueca conceder o Nobel de 2024 para Han Kang, autora, dentre outros, de "A Vegetariana". Aos 53 anos, jovem para os padrões do prêmio, a autora nem sequer aparecia nas longas listas de mais cotados. É mais uma consequência dos investimentos sul-coreanos no fomento e na internacionalização de sua cultura.
Premiados
Alguns vencedores de outros prêmios relevantes. Rosa Freire D'Aguiar levou o Jabuti com "Sempre Paris" (Companhia das Letras). O Oceanos de prosa foi para Micheliny Verunschk por "Caminhando com os Mortos" (Companhia das Letras), enquanto o de poesia ficou com Núno Júdice pelo seu "Uma Colheita de Silêncios" (Dom Quixote).
Luciany Aparecida com "Mata Doce" (Alfaguara) e Eliane Marques com "Louças de Família" (Autêntica Contemporânea) levaram o São Paulo. Olhando para algumas categorias do Biblioteca Nacional, Maria Valéria Rezende venceu em Conto com "Toda Palavra dá Samba" (Dromedário), Alexandre Vidal Porto levou em Romance com "Sodomita" (Companhia das Letras) e a dupla Alexandre S. Lourenço e Lielson Zeni faturaram em HQ com "Damasco" (Brasa).
Uma pena que, outra vez, João Silvério Trevisan passou em branco, apesar de "Meu Irmão, Eu Mesmo" ter chegado a algumas finais. Espero que em algum momento venha o reconhecimento que Trevisan merece.
Telas
E quando resolve não ficar se repetindo com super-heróis modorrentos ou regravações de antigos sucessos, o audiovisual segue apostando nas adaptações de livros. "Ainda Estou Aqui", de Marcelo Rubens Paiva (Alfaguara), "Cem Anos de Solidão", de Gabriel García Márquez (Record), e "Pedro Páramo", de Juan Rulfo (Record), foram três obras latino-americanas que fizeram barulho com suas versões nas telas.
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