De 'Misericórdia' a 'Baratas': 7 trechos inesquecíveis para iniciar o ano
Mais um ano que se inicia. Já que a bola quica, aproveito para pescar alguns livros da biblioteca e compartilhar bons começos de romances (e de um conto). Me parece uma boa forma de começarmos o ano.
Aqui onde me encontro, mesmo em tempo de Primavera, quando os dias costumam ser do tamanho das noites, a noite sempre é mais longa que o dia. Sabendo disso, é precisamente a meio da noite que a noite vem ter comigo, dirigindo-me perguntas inimagináveis como se fosse aquele gato pardo, muito antigo, que se chamava esfinge. "Misericórdia", de Lídia Jorge (Autêntica Contemporânea)
Soldado Um e Soldados Dois se encontraram na frente de um cadáver, em cujos olhos abertos não se projetava o céu espesso da guerra, mas uma luz que dava a sensação da escuridão. Soldado Um e Soldado Dois haviam se aproximado do cadáver, um para reconhecer se era um colega morto, outro para saber se havia acertado seu disparo. "Fúria", de Clyo Mendoza (Peabiru, tradução de René Duarte)
Volta ao quarto com uma mala. Resistente, forrada em couro marrom, apoia-se em quatro rodinhas e oferece elegância a alça à altura dos joelhos. Ele não se arrepende de seus atos. Acredita que as punhaladas em sua mulher são justas e, se restasse algo de vida nesse corpo, terminaria o trabalho sem culpa. O que Benavides sabe, pois a vida é assim, é que poucos compreenderiam as razões do assassinato. "A Mala Pesada de Benavides", de Samanta Schweblin, um dos contos de "Pássaros na Boca" (Fósforo, tradução de Joca Reiners Terron)
Atravessei a fronteira, mãe. Não retornarei. Sei que é impiedoso, covarde, dizer-lhe: prefiro a guerra, os tiros, o estrondo frio da morte, os corpos despedaçados, os mortos amontoados, a esta nossa família; ou a tua, ou a dele. Pouco importa de quem seja esta família, este ensaio malsucedido de agrupamento. "Na Escuridão, Amanhã", de Rogério Pereira (Dublinense)
Todas as noites meu sono é abalado pelo mesmo pesadelo. Sou perseguida, escuto uma espécie de zumbido que vem em minha direção, um barulho cada vez mais ameaçador. Não me viro. Não vale a pena. Sei quem me persegue? Sei que eles têm facões. Não sei como, sem me virar, sei que eles têm facões? Às vezes, também, aparecem minhas colegas de classe. Escuto seus gritos quando elas caem. Quando elas? Agora, estou correndo sozinha, sei que vou cair, que vão me pisotear, não quero sentir o frio da lâmina sobre meu pescoço, eu? "Baratas", de Scholastique Mukasonga (Nós, tradução de Elisa Nazarian)
Ele não tinha mais sapatos e seus pés, àquela altura, já eram outra coisa: um par de bichos disformes. Dois animais dentados e imundos. Duas bestas, presas aos tornozelos, incansáveis, avante, um depois do outro, avante, conduzindo Samuel por dezesseis longos dias sob o sol. "A Cabeça do Santo", de Socorro Acioli (Companhia das Letras)
Quando saíram de Grant County e vieram para o sul, Boyd não era muito mais que um bebê e o próprio recém-criado município chamado Hidalgo era um pouco mais velho que o menino. Na terra que deixaram estavam sepultadas uma irmã e a avó materna dele. A nova erra era fecunda e selvagem. Era possível viajar a cavalo direto até o México sem avistar uma cerca sequer. Ele levava Boyd na frente no arção da sela e ia dizendo para ele os nomes das peculiaridades da paisagem e dos pássaros e dos animais em espanhol e em inglês. Na nova casa dormiam na dependência na cozinha e de noite ele ficava deitado acordado ouvindo a respiração do irmão no escuro e murmurando para ele os planos para os dois e a vida que viriam a ter. "A Travessia", de Cormac McCarthy (Alfaguara, tradução de José Antonio Arantes)
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