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Opinião

Lísias versus Eduardo Cunha: STF pensa que não sabemos compreender um livro

Em 2017, quando foi lançado, "Diário da Cadeia - Com Trechos da Obra Inédita: Impeachment" logo mostrou que faria mais barulho pelas controvérsias jurídicas em que seria envolvido do que pelo texto em si.

De pronto, os advogados do ex-deputado federal Eduardo Cunha encresparam com o nome de quem assina o livro: "Eduardo Cunha (Pseudônimo)", como consta na capa. Processaram a Record e obtiveram uma liminar favorável. O juiz proibiu a circulação do livro e exigiu que a editora revelasse quem era o escritor por trás da obra.

Assim o fizeram. Ricardo Lísias criara o diário de um político poderoso preso que, da cela, analisa a situação do país de acordo com sua ótica torpe e dispara bordoadas contra seus pares.

A decisão foi revertida pouco depois. Outro juiz derrubou a liminar, liberou a circulação do livro e permitiu que o anonimato artístico fosse reestabelecido. Como colocariam o nome de Lísias de volta na gaveta? Ninguém da Justiça explicou.

Em "Diário da Cadeia", realidade e a ficção se cruzam a todo momento. É uma sátira que busca emular os dias de Cunha no presídio até o final de 2016. Por meio desses relatos imaginados, temos uma esculhambação sobre a esculhambada política nacional.

Agora o imbróglio ganha um novo capítulo. O Supremo Tribunal Federal reverteu a decisão que havia sido tomada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Multou a Record em R$ 30 mil e mandou recolher a obra das livrarias —o livro já estar esgotado é outro pormenor.

Em sua decisão, Alexandre de Moraes se mostra de acordo com o argumento de que tudo não passaria de uma ardilosa e inescrupulosa estratégia comercial. O livro publicado pela Record induziria o leitor ao erro, que poderia adquiri-lo e lê-lo pensando ser, de fato, uma obra do ex-deputado.

Não convence.

Pela forma como o texto é construído. A maneira como Eduardo Cunha, o personagem, se porta na prisão. Pelo jeito como trata outros figurões da política e pelos caminhos que a história toma...

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Qualquer leitor minimamente perspicaz se perceberia diante de uma provocação ao caos político em que o país estava metido. Uma ficção ora em consonância, ora em atrito com aquela realidade, mas, acima de tudo, uma criação artística. Um trecho para ilustrar:

Michel Temer é que vai ter que pensar bastante no Odebrecht em 2017. Vai fazer muita poesia, o nosso poeta presidente. É impressionante: uma quer escrever um livro policial, o outro faz poesia. Do Fernando Henrique eu nem falo. Imagina ele fazendo biquinho e falando francês. Nesse caso o Lula destoa bem desse grupo todo.

Ressabiado, esse leitor poderia buscar no próprio livro elementos que confirmem a desconfiança. Ao ver na ficha catalográfica que a obra é classificada como um romance brasileiro, confirmaria não ter em mãos um diário verídico, muito menos de algo escrito por um dos políticos mais influentes do país até pouco tempo atrás.

Ir para um texto armado e, por meio de detalhes, duvidar de sua alardeada natureza exige alguma experiência, concordo. E são raros os que procuram por informações em fichas catalográficas —que, é verdade, nem sempre são plenamente confiáveis.

Agora, mesmo para quem não sacasse um ponto nem outro, como acreditar que se está diante de um diário escrito pelo Eduardo Cunha político se logo na capa da obra há um imenso "pseudônimo" colado à autoria? Se alguém ainda assim é enganado, o problema está na forma como a pessoa (não) compreende as palavras, dialoga com a literatura e interpreta uma obra de arte.

Em certo momento, a defesa de Cunha alegou que escritor e editora tinham o objetivo de criar confusão. E daí? Não é papel de um artista confundir, borrar as fronteiras entre o que o senso comum entende ser real e ficcional, ombrear com limites impostos e, aos deslocá-los, expandir os horizontes?

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O problema de letramento artístico no país é uma das consequências de nossa educação cheia de falhas. Para muitas pessoas, nem sequer foram dadas condições de ter uma visão crítica, que vá além da superfície, ao se deparar com um livro —ou um filme, um quadro...

Não é isso, no entanto, que torna razoável a justiça determinar qual tipo de arte pode ou não circular pelo país.

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Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

6 comentários

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Salvador Rodrigues de Lima

É uma tremenda invasão, censura, ou coisa parecida. Acho que ainda vão implicar com o conteúdo e obrigarão o autor a reescrever o livro para se harmonizar com a visão dos doutrinadores do STF. Se a editora insistir, sempre será possivel lançar o livro à fogueira.

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Cidinei de Carli Favalessa

Análise perfeita da situação; aliás, é possível que o ministro AdeM (não compreendam por pseudônimo, por favor) não tenha lido o livro em questão... 

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Carlos Augusto Amaecing Langbeck

Lembro que enquanto o uso de pseudônimos pode envolver estratégias comerciais, as motivações para adotá-los podem variar amplamente e nem sempre são exclusivamente comerciais.

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