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Opinião

Ao olhar para a própria obra, Marina Colasanti se dizia pronta para partir

"Eu não sou pessoa do grandioso. Eu encontro o grandioso no pequeno. Sei que a mínima formiga tem tanta vida quanto as constelações. A vida, para mim, é um dom supremo".

Lembro com carinho a última vez em que conversei com Marina Colasanti, morta nesta terça-feira (28), aos 87 anos. Havíamos participado de uma mesa sobre Clarice Lispector, de quem era amiga e admiradora —tanto que escreveu, junto de Affonso Romano de Sant'Anna, seu marido, "Com Clarice" (Unesp), sobre a relação com a autora de "A Hora da Estrela".

Como as portas pareciam abertas, convidei Marina para um papo no podcast da Página Cinco em 2021, logo após ela lançar "Vozes de Batalha" (Tusquets), um de seus últimos livros. A entrevista foi ótima. Em outra passagem marcante, falou sobre como a literatura lhe fez companhia desde os primeiros momentos de sua vida:

"Eu fui amamentada com livros. Minha mãe e minhas babás não nos contavam histórias, liam para nós com os livros no colo. Então, a primeira palavra que me chegou foi a escrita. E a palavra oral é muito diferente da escrita. A palavra escrita implica uma sofisticação, a composição exata de uma frase. A palavra oral é muito diferente, se improvisa, inclui gírias. Eu nunca fui educada com a palavra oral".

Filha de italianos e nascida na Eritreia, os primeiros anos de Marina acompanharam as andanças do pai, funcionário de um órgão controlado pelo governo fascista. Ainda viveu na Líbia e na Itália. No final da década de 1940, por conta da situação da Europa, a família de Marina se mudou para o Brasil.

Na infância, fez dos livros companheiros inseparáveis. Era entre as páginas e histórias que se encontrava no mundo. Quando chegou no Rio de Janeiro e foi morar numa mansão que ficava no atual parque Laje, encontrou ecos daquilo que havia conhecido na literatura de nomes como Emilio Salgari e Rudyard Kipling.

"Eu tinha o cheiro da selva, que havia aprendido nos livros, dentro do nariz. Na primeira noite que passei no Parque Lage, abri as janelas para que entrasse o ar daquela selva misteriosa. Eu cheirei e reconheci o cheiro que eu havia lido em tantos livros. Pensei: então o cheiro do Brasil é esse", relembrou em nossa conversa.

Levou, como sabemos, essa relação com as palavras para toda a vida. Via a poesia como fundamental pela liberdade do gênero, por como cada leitor pode interpretar um poema de acordo com suas próprias emoções, de acordo com a fase de sua vida. Uma literatura que não fala através das palavras, mas por trás das palavras, ilustrava.

Conecta com a forma como Marina enxergava a literatura feita para crianças, a área em que mais se destacou. O colega Bruno Molinero, que faz um trabalho admirável na cobertura dos livros infantis e juvenis, ressaltou: para a autora, um texto para os pequenos não tem a obrigação de ensinar nada.

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A obsessão pelos conhecimentos ou mensagens morais é um veneno para essa literatura, entendia a escritora. A mensagem, convenhamos, bem que poderia ecoar no ouvido e na cabeça de muitos autores contemporâneos que escrevem para diferentes públicos.

Marina foi artista plástica, ilustradora e tradutora. Teve uma carreira importante no jornalismo, frente em que estreitou o diálogo com as crianças.

Na literatura, fez de tudo: prosa e poesia. Ficção e não ficção. Livros para crianças, jovens e adultos. Foram mais de 70 títulos, dentre eles "Entre a Espada e a Rosa" (Melhoramentos), "Ana Z, Aonde Vai Você?" (Ática) e "Breve História de um Pequeno Amor" (FTD).

Além de "Vozes de Batalha", dentre seus títulos recentes estão "Mais Longa Vida", de poemas (Record), e "Sereno Mundo Azul", de contos (Global). Na sua enorme coleção de prêmios, constam sete estatuetas do Jabuti, além de ter virado hors-concours da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e recebido o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra.

Volto ao nosso papo. Quando perguntei para a Marina como ela enxergava a trajetória traçada e a obra construída, respondeu: "Avalio que estou pronta para ir embora".

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

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5 comentários

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Lucia Irene Reali Lemos

Eu era adolescente quando li um texto da Marina Colasanti e de lá pra cá continuei lendo seus textos e poemas. Hoje estou com 62 anos e ainda me vejo naquela adolescente que ficou encantada com as palavras de Marina. Não consegui me tornar escritora, mas sigo como uma leitora apaixonada pela forma com que Marina Colasanti transitava entre todas as gerações.  Siga em paz querida.

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Shirley Aparecida Valdevino

Minha linda, descanse em paz. Muito obrigada por tornar o mundo um lugar melhor para viver com sua imensa obra. 

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Marcelo Carvalheiro Brinholli

Cada vez que morre alguem assim é como se uma biblioteca fosse queimada.

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