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Opinião

A fé, a grana e os monstros que se alimentam de carne latino-americana

Gosto de encontrar livros pretensiosos que bancam a pretensão. É bom ver autores apostarem alto, se arriscarem e, coisa rara, conseguirem entregar para o leitor um trabalho notável. O normal é vermos a ambição se espatifando em mãos pouco habilidosas.

O espanhol Juan Gómez Bárcena está no time daqueles que se garantem em empreitadas cheias de riscos. Ao menos é o que indica "Nem Mesmo os Mortos", romance recém-publicado no Brasil pela DBA (tradução de Silvia Massimini Felix).

Século 16. Antigo soldado da Coroa Espanhola, Juan recebe a missão de caçar Juan, seu xará, indígena que desafiava autoridades naquele território que mais tarde se transformaria no estado mexicano. "Nem Mesmo os Mortos" começa com ares de aventura histórica, promessa que se cumpre, mas é bem mais do que isso.

A principal pretensão bancada por Bárcena é construir um romance em que acompanhamos o protagonista numa busca que se estende por mais de quatro séculos e acompanha grandes mudanças na porção mais ao norte da América. Causa boa surpresa ver como o autor consegue percorrer um período tão longo de forma coesa, sem grandes rupturas.

Cabe ao leitor perceber como as coisas paulatinamente mudam. Jamais deixamos de acompanhar aquele Juan que persegue o outro Juan, mas isso não quer dizer que eles sejam sempre os mesmos. São personagens que ganham dimensões mitológicas na forma como vivem e representam enrascadas de nosso continente.

Indígena criado na Igreja, Juan, o perseguido, aprendeu muito bem a usar uma das maiores armas dos colonizadores: o domínio da palavra, o talento para criar histórias capazes de reunir e motivar multidões. Outra face da mesma moeda, tem a mente afiada para desmontar ficções estabelecidas, sempre um risco imenso para quem detém o poder.

Tornou-se um homem culto. Traduziu Boécio e Ovídio. Leitor atento, começou a desconfiar das pregações; muitas vezes o discurso dos padres não coincidia com o que estava na Bíblia. Virou um cara perigoso, ainda mais quando caiu no mundo acompanhado de seu próprio livro, de suas próprias ideias. Do que era acusado? Falavam em heresia e sedição.

É uma história que caminha para o norte, sempre para o norte, em direção ao monstro que se "alimenta de carne centro-americana". As devoções mudam. Há revolta. Surgem revoluções e utopias que logo se diluem ou se desmancham. Esperanças são esfaceladas. A veneração ao trabalho disfarça o real objeto de devoção: a grana. Mudam os mitos, mudam os discursos, muda a forma como a sociedade se estrutura. Surgem coachs e falam num muro para separar países.

São nítidos em "Nem Mesmo os Mortos" os ecos de Roberto Bolaño e Cormac McCarthy, autores que exploraram magistralmente esse território hostil e de fronteiras cambiáveis entre México e Estados Unidos. Mas na literatura de Bárcena há também o fascínio livreiro de Jorge Luis Borges e Umberto Eco, um pouco de Neil Gaiman com a ascensão e queda das divindades de "Deuses Americanos", um toque do futuro onde tudo é negociável do David Foster Wallace de "Graça Infinita".

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E há também a pequena dose de um veneno de nossos dias. Bem pouco, é verdade, nada que chegue a indicar que o autor considera o leitor um parvo, como tantas vezes encontramos. Mas aqui e ali Bárcena exagera nas explicações, explicita o que já estava bem resolvido nas entrelinhas. E se descuida com repetições: mira num bom recurso estilístico, mas, ao exagerar, faz de algumas estruturas fórmulas exaustivas.

Ao longo de quase 500 páginas, Bárcena traça um panorama de mais de 400 anos de América Latina centrado nos atritos entre povos do México, Espanha e Estados Unidos. Criando um jogo de espelhos e contrastes entre os dois Juans, constrói um romance que mostra como toda a história descamba no presente que temos hoje. Por isso mesmo, é uma história que jamais vira, de fato, passado, apesar das mudanças constantes.

Peça fundamental do presente, esse passado nunca fica para trás, por mais que o impulso seja sempre adiante, em direção ao futuro onde o sucesso é prometido, onde as metas mais audaciosas serão alcançadas. Um futuro cheio de ciladas e ilusões, como nossa história indica.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

1 comentário

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Leandro Aluisio de Souza Gomes

Obrigado pela dica!

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