Affonso Romano: Uma coisa é ter bons sentimentos, outra é se tornar autor
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Separei um tempo nos últimos dias para ler algumas coisas de Affonso Romano de Sant'Anna. Prestei atenção principalmente em entrevistas, na forma como o autor expunha suas ideias sobre a literatura.
Affonso se foi na última terça-feira, no meio do Carnaval. Tinha 87 anos e sofria do mal de Alzheimer. Ficara viúvo há pouco. A escritora Marina Colassanti, sua parceira ao longo de 35 anos, nos deixou no final de janeiro. Mortes tão próximas dão toque de história de amor a essas grandes perdas para nossas letras.
Vez ou outra me deparo com a discussão sobre arte engajada: boa ou não? É uma pergunta que normalmente se apoia no discurso dos artistas, no que eles dizem sobre seu trabalho, não na arte em si.
Cada caso é um caso. Abro mão de saber as intenções do autor e vou ao texto. Se a coisa for um panfleto escancarado, dispenso. Prefiro se for um texto bem resolvido com suas camadas políticas.
Affonso traz outra perspectiva num papo publicado pelo jornal Rascunho em 2003. "Toda poesia boa é engajada, porque ela está dizendo alguma coisa que interessa, bate na alma do leitor. Ainda que seja sobre amor, sobre algo aparentemente vago, seja sobre a morte —pode haver nisto engajamentos".
Reconhecia esse engajamento que extrapola as questões políticas, mas não topava qualquer coisa. Sabia: a forma —do poema e, acrescento, de qualquer texto literário — é crucial. Apenas boas intenções não bastam.
Na ocasião, citou um de seus trabalhos mais famosos. "Um poema como 'Que País é Este?' publicado no Jornal do Brasil, em 1980, sendo engajado, você há de convir, é também um poema de alto rigor formal". Naqueles versos, lemos:
"Uma coisa é um país,/ outra um ajuntamento.// Uma coisa é um país,/ outra um regimento.// Uma coisa é um país,/ outra o confinamento.// Mas já soube datas, guerras, estátuas/ usei caderno 'Avante'/ — e desfilei de tênis para o ditador./ Vinha de um 'berço esplêndido' para um 'futuro radioso'/ e éramos maiores em tudo/ — discursando rios e pretensão.// Uma coisa é um país,/ outra um fingimento".
Poucos anos depois, em 2006, o autor voltou a lembrar como escritores, sobretudo os mais novos, devem ir além das vontades na hora de compor sua literatura. O papo, na ocasião, foi no Paiol Literário.
"O jovem autor tem que tomar cuidado. Você não pode sair por aí querendo escrever um livro de poesia, um romance, e achar que as pessoas vão acolhê-lo só por causa disso. Porque uma coisa é você ter bons sentimentos e querer contar uma história e escrever um texto; outra coisa é ser lido e virar um autor. Você tem que descobrir qual é a sua voz".
Autor de mais de 40 livros, Affonso ajudou a pensar a formação de leitores principalmente enquanto esteve à frente da Fundação Biblioteca Nacional. Também reconhecido como cronista, escreveu para alguns dos principais jornais do país. Foi professor e estudou a fundo a literatura. Ao lançar "Drummond - O Gauche no Tempo", ouviu de Carlos Drummond de Andrade um elogio que qualquer crítico literário gostaria de carregar consigo: "você me desparafusou todo".
Em aulas, vez ou outra sou questionado: ainda vale a pena se aventurar por gêneros que às vezes parecem saturados, como a autoficção? Sempre digo que tudo parece saturado até que alguém consiga, enfim, criar algo diferente. Não é fácil nem há caminhos prontos, cabe ao autor decidir o que fazer e por onde seguir.
Talvez eu passe a usar uma citação de Affonso que também está na entrevista ao Paiol:
A arte moderna instituiu uma série de quesitos que têm que ser superados. A vergonha de comunicar, de ser entendido, da harmonia, da melodia, da narração. [...] Eu sempre repito: não há formas esgotadas. Há pessoas esgotadas diante de certas formas. Esse é o desafio.
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