'Dedico a Você Meu Silêncio': a razoável despedida de Mario Vargas Llosa
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A carreira de ficcionista de Mario Vargas Llosa chegou ao fim.
É o que diz o próprio peruano, vencedor do Nobel de Literatura de 2010 e hoje com 88 anos. "Dedico a Você Meu Silêncio", livro publicado em 2023 e que saiu no Brasil no final do ano passado pela Alfaguara (tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman), marca o ponto final da ficção de um dos escritores mais importantes da América Latina.
Talvez "Dedico a Você Meu Silêncio" seja o último livro diretamente ligado ao chamado boom da literatura latino-americana, que teve Llosa como uma de suas figuras centrais. Estavam ao seu lado gigantes como o colombiano Gabriel García Márquez, o mexicano Carlos Fuentes e o argentino Julio Cortázar.
O mundo deus algumas piruetas desde que o fenômeno editorial estourou nos anos 1960. Quase todos os autores daquela fase já morreram. Livros como "Cem Anos de Solidão", de Gabo, e "O Jogo da Amarelinha", de Cortázar, passaram por olhares mais ou menos amigáveis diante de leitores de distintas gerações.
Llosa, por sua vez, também mudou. Em termos ideológicos, ainda nos anos 1970 começou uma conversão à direita que se intensificaria com o passar das décadas. Dedicou parte da carreira ao ensaio. Centrou o umbigo na Europa e virou um intelectual com assento na Academia Francesa. Em certa fase, apimentou sua prosa com livros permeados de erotismo e sensualidade.
Ao longo de mais de seis décadas, nunca deixou de produzir. Escreveu muita coisa dispensável, é verdade, mas em diferentes momentos da carreira entregou aos leitores verdadeiras preciosidades.
Exemplo: quase 40 anos separam o festejado "A Cidade e os Cachorros" de "A Festa do Bode", maravilha que merece estar em qualquer lista de grandes romances da história. Ainda que nem sempre acerte, algo normal para qualquer escritor - e ainda mais para um autor tão longevo e prolífico -, Llosa é um ficcionista que merece a atenção dos leitores.
Dedico a Você Meu Silêncio
"Dedico a Você Meu Silêncio", uma pena, não ombreia com os grandes momentos da literatura de Llosa. No romance acompanhamos Toño Azpilcuta, pesquisador e grande entusiasta da música tradicional peruana que vive de escrever para veículos de imprensa que mal lhe pagam. Certo dia, após um convite improvável, Azpilcuta assiste à apresentação de um músico de quem jamais tinha ouvido falar.
Com seu violão, Lalo Molfino arrebata o crítico. Poucas notas são necessárias para Azpilcuta ter a certeza de estar diante de um dos maiores músicos da história do país. Tamanho brilhantismo só poderia ser sucedido de um sucesso estrondoso. Isso se Lalo Molfino não desaparecesse sem deixar rastro.
Então, Azpilcuta mergulha numa busca pelo artista e, depois, por compreender a sua trajetória. Se ninguém mais pode ouvir o violão de Lalo, que todos conheçam a sua história. Um livro pensado para homenagear o músico e, também, contribuir para solucionar os grandes problemas do país: é o que Toño Azpilcuta se propõe a escrever.
A história de Lalo e as ideias de Azpilcuta convergem. Lalo nasceu na miséria, foi abandonado num lixão e cresceu tendo a música - seu violão, acima de tudo - como esteio. Azpilcuta aprecia especialmente a música que nasce das adversidades e, mesclando influências de diferentes origens, carrega o que seria as verdadeiras marcas de um país. Isso, numa visão utópica, poderia se transformar num vetor decisivo de agregação e pacificação social.
A arte como o caminho para algum tipo de redenção ou salvação coletiva é a camada mais evidente do livro que Azpilcuta deseja escrever. Enquanto se debate com a forma para as suas convicções, novas ideias surgem e a ambição do autor aumenta. Bom ver a luta entre criador e criatura mesmo para a elaboração de uma não ficção - e aqui ainda falo da batalha travada entre o personagem e seu livro dentro da ficção.
Só que Llosa constrói essa história com uma narrativa que soa cansada, pontuada por diálogos aquém de um autor de seu tamanho. Ao intercalar o enredo principal com capítulos de pegada ensaística sobre a história da música peruana, comete um erro frequente em nossos dias, mas nem por isso perdoável: impregna o romance com discursos que prega por aí, transformando o narrador num ventríloquo do próprio escritor.
Além disso, perde a chance de trabalhar com calma algumas questões presentes em "Dedico a Você Meu Silêncio". O terror do Sendero Luminoso e a importância do trabalho da mulher para que Azpilcuta possa se dedicar às ideias e fantasias são dois exemplos. A imagem de ratos a corroerem tanto o emocional do personagem quanto partes do país também merecia um melhor acabamento.
"Dedico a Você Meu Silêncio" tem lá seus bons momentos. Toño Azpilcuta é um personagem que cativa. Lalo Molfino aparece como novo companheiro de artistas misteriosos de nossa literatura, como Cesárea Tinajero, de Roberto Bolaño. Bacana conhecer vertentes da cultura peruana tão pouco difundidas no Brasil. Um livro no máximo razoável, no entanto, é pouco para a despedida de um escritor do tamanho de Mario Vargas Llosa.
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3 comentários
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Cleomar Ribeiro
... gracias por venir, ' Torero Hechicero'!!!... ole, ole, ... , ole!!!...
Adimara da Candelária Renesto
O Sonho do Celta é uma obra prima! Grande escritor.
Maria Alice Viveiros de Castro
triste despedida de um grande romancista...o livro é ruim. Uma ideia inicial que até poderia se tornar algo interessante. Conheço um pouco de música peruana mas Llosa faz listas de autores, músicas, músicos, cantores e pouco desenvolve a história. O personagem principal e sua busca são engolidos por essa sucessão de nomes. Será lembrado por Casa Verda, Pantaleon, Los pedroso...e tantos outros...