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Pedro Antunes

2020, o ano em que a música viveu por cinco com singles, lives e mais

Bastidores da live da dupla Anavitória - Batman Zavareze / Divulgação
Bastidores da live da dupla Anavitória Imagem: Batman Zavareze / Divulgação

Colunista do UOL

28/12/2020 04h00

Retrospectiva 2020

  • O que o ano de 2020 apresentou para o mercado da música?
  • Três especialistas que atuam na indústria fonográfica falam sobre singles e lives
  • Felipe Simas (Anavitória e Manu Gavassi), Ana Garcia (Coquetel Molotov) e Gabriel Duarte (Coala Festival) falam sobre o que esperar de 2021

Você provavelmente assistiu ao seu artista favorito sem sair de casa, sem pegar transporte público ou ir de carro e buscar por algum lugar para estacionar. Estava também sem os amigos por perto, a não ser que morasse com eles.

O ano de 2020 transformou a música ao vivo em um bizarro evento solitário (mesmo com aquelas caixas de bate-papo).

Lives, shows virtuais, chame essas ações como quiser. As transmissões de eventos ao vivo não estavam no radar do mercado da música como uma ação viável no início de 2020, essa é a verdade, mas esse ano pandêmico causou um rebuliço no status quo. De inimagináveis passaram a ser a saída - e a venda de ingressos virtuais para os shows, tão debatida é, convenhamos, necessária.

Assisti a alguns shows virtuais. Gratuitos e pagos. Produções realizadas por artistas brasileiros de diferentes escalas - aliás, você viu que a APCA, Associação Paulista dos Críticos de Arte, indicou as cinco lives do ano? - e também gringas, com convites de gravadoras para jornalistas e tal. Muita coisa linda, umas meio enganadoras demais.

Afinal, as lives estavam no horizonte da música nacional?

Guarde essa pergunta acima, porque 2020 também evidenciou outra transformação já em vigor na música, mas não era tão clara e a mudança caminhasse sem uma aceleração tão drástica.

Estou falando dos singles, claro. É possível que, assim como você assistiu à performance do seu artista favorito em alguma live, ele também deve ter lançado um single novo em 2020 - e, talvez, um punhado de singles, um EP, um disco e uma pancada de outros lançamentos.

O ano pandêmico de 2020 mostrou o que as turnês e shows ainda disfarçaram. A voracidade com a qual a indústria fonográfica completa (entenda, por isso, as plataformas digitais, os algoritmos e até as redes sociais como Instagram) consome música é humanamente impossível para um artista que compõe e grava as próprias músicas.

Existe uma verdade nunca dita com todas as letras, mas testada de forma empírica por artistas de diferentes tamanhos, que apresenta escancara o fato de se lançar um disco por ano e só não basta mais. É preciso pulverizar a arte, soltá-la aos pouquinhos, se quiser melhorar o desempenho nas plataformas digitais, chegar às playlists mais bombadas e coisas assim. Atenção ao "se quiser", certo?

Singles não são novidades, não é? Eles dominam a música antes mesmo da criação dos Long Plays, os LPs, ou álbuns/discos.

Afinal, os singles voltaram para ficar? Para onde vão os discos cheios?

Bom, 2020, o ano dos singles e das lives. Por isso, pergunto: em 2021, eles serão obrigatórios?

O que me parece é que 2020 fez a música acelerar nos processos de transformação (se são positivos ou negativos, isso depende do uso de cada um).

O que levanta o questionamento de como o mercado encarou essas transformações e o que deve ser mantido quando os shows presenciais voltarem.

Foram enviadas perguntas para Felipe Simas (empresário, manager e tudo mais do duo Anavitória e Manu Gavassi), Ana Garcia (diretora do festival No Ar Coquetel Molotov, no Recife) e Gabriel Andrade (co-fundador e curador do Coala Festival, em São Paulo).

Andrade, que respondeu às perguntas em uma única resposta, oferece uma visão de como o Coala Festival transformou a experiência virtual em uma ação bem-sucedida.

Ney Matogrosso, uma das atrações do Coala Festival 2019 - Roncca / Divulgação - Roncca / Divulgação
Ney Matogrosso, uma das atrações do Coala Festival 2019 - saudade de uma aglomeração, não é?
Imagem: Roncca / Divulgação

Estava nos planos do festival (queridinho de quem ama brasilidades, já que tem um line-up formado exclusivamente por artistas nacionais), por exemplo, uma transmissão virtual na edição de 2020, mas, diante da pandemia, os planos mudaram e foi realizada uma versão completamente digital e imersiva do festival, de nome Coala.VRTL.

Diz aí, Gabriel:

"O Coala já seria transmitido em 2020, mas a transmissão não era nosso foco; ela seria criada e executada por um parceiro. Com a pandemia, nós internalizamos o processo criativo da transmissão e da experiência virtual e aprendemos muito. Essa experiências culminou no lançamento do Coala.TV e a ideia é que esse canal seja cada vez mais ativo e mais relevante. O ponto principal é explorar os diversos pontos de contato com o público, como as transmissões, podcasts, conteúdos originais em vídeo, ações de marca, para manter essa ideia de um evento híbrido, que seja relevante tanto pra quem está ali presencialmente quanto para quem está em casa em qualquer canto do mundo."

O curador do Coala Festival segue:

"O saldo foi muito positivo! Tivemos um grande aprendizado de produção audiovisual, desenvolvemos criativamente o que é o Coala no ambiente virtual, testamos muitas novas ferramentas, criamos o Coala.TV e tivemos a maior audiência da nossa história, com 660k espectadores em mais de 20 países, o que seria inconcebível fazendo apenas presencialmente."

Os números, de fato, são impressionantes. É bom lembrar que o Coala Festival anunciou uma versão física para 2021, com Gal Costa e Maria Bethânia já anunciadas.

Ana Garcia - Hannah Carvalho / Divulgação - Hannah Carvalho / Divulgação
Ana Garcia, diretora do festival Coquetel Molotov
Imagem: Hannah Carvalho / Divulgação

Também entrevistada pela coluna, Ana Garcia prepara o ótimo No Ar Coquetel Molotov nesta versão virtual, após 17 anos de existência, a ser transmitido entre os dias 11 e 23 de janeiro, depois de uma boa experiência com o Coquetel Molotov.EXE (em julho), com workshops, masterclasses, performances e mais.

A versão digital do No Ar Coquetel Molotov de 2021 traz mais do que os shows/lives - algo, apontado pelos especialistas ouvidos pela coluna, como você poderá ler abaixo -, afinal, a dinâmica de lives precisa entregar mais do que a performance do artista em um palco. A proposta é entregar ao público uma sensação de imersão no universo artístico. O que faz todo o sentido.

Felipe Simas, durante a pandemia, fez de tudo. Morando junto com Anavitória, em Itaipava, na região serrana do Rio na época das lives da dupla, fez a direção das apresentações, foi roaddie, editou o teleprompter e o que mais fosse preciso.

E também viu a outra artista com a qual trabalha, Manu Gavassi, estourar mais uma vez com o clipe conceitual do single "Deve Ser Horrível Dormir Sem Mim", que arrecadou números assombrosos em um vídeo de mais de 10 minutos de duração - sim, uma duração muito na contramão de quem acredita que a produção precisa ser de curta duração.

A seguir, as respostas na íntegra de Ana Garcia e Felipe Simas sobre como 2020 foi o ano em que a música viveu por cinco.

Sobre singles: 2020 deixou mais evidente a voracidade da indústria por singles, EPs e lançamentos mais dinâmicos? Digo isso sem juízo de valor, é uma constatação apenas. Era um caminho que iria acontecer, mas que foi acelerado pela pandemia/isolamento social? Como você vê essa história?

Ana Garcia: "A indústria no geral, não só a musical, pede por novidades constantes. Os singles dominam o mercado há tempos, mesmo quando ainda se vendiam álbuns, artistas e gravadoras escolhiam uma canção pra fazer seu videoclipe e ser o carro chefe da divulgação. Mas realmente poucos lançamentos levantam discussões que perduram por semanas como antigamente. Hoje, artistas fazem clipes com investimento de marcas, muitas vezes dirigidos por agências de marketing, buscando criar algo que consiga atravessar esse mar de notícias e algoritmos desfavoráveis a produções artísticas. Também por causa das plataformas de streaming, que raramente trabalham mais de uma canção de um artista por playlist editorial, lançar singles fortes, fazendo feats, criando coreografias, pode significar mais passos na construção de uma carreira atualmente."

Felipe Simas: "Vivemos atualmente o auge dos tempos hipermodernos e da modernidade líquida (termos cunhados pelos filósofos Gilles Lipovetsky e Zygmunt Bauman, respectivamente). Somos hipermodernos porque a revolução tecnológica invadiu de vez o nosso cotidiano e os tempos são líquidos porque nada é feito para durar. A intensificação desses pilares criou um ambiente sem precedentes na existência humana e isso se reflete em todos os campos. Na música não seria diferente. Era inevitável, independentemente desse momento pandêmico do mundo. E isso se reflete, sim, no atual volume colossal de lançamentos de singles em detrimento ao de álbuns. Mas, para nossa sorte, ainda há um número significativo de artistas apegados ao conceito de "Eras" e álbuns, e que preferem embalar várias músicas em torno de um conceito comum e que, juntas, contam uma só história. Artistas com esse perfil podem, muitas vezes, não ter números tão expressivos a curto prazo, mas eles têm mais chances de construir uma carreira sólida e duradoura a longo prazo."

Felipe Simas (de costas) na live da dupla Anavitoria  - Batman Zavareze / Divulgação - Batman Zavareze / Divulgação
Felipe Simas (de costas) na live da dupla Anavitoria
Imagem: Batman Zavareze / Divulgação

2021 manterá esse fluxo de lançamentos mais picados e constantes?

Ana Garcia: "Imagino que sim, mas não só necessariamente singles. A demanda por materiais mais imersivos e bem produzidos também existe, artistas que já tem audiência e uma obra consolidada devem entregar materiais ao vivo/conceituais, mais bem produzidos que as "lives" que foram tônica nesse 2020. Imagino que com os inúmeros editais da Aldir Blanc, muito material já esta no forno pro primeiro trimestre de 2021."

Felipe Simas: "Como canta Humberto Gessinger, "há espaço para todos, há um imenso vazio". 2021 será, certamente, permeado por muitos e muitos singles, mas acredito que também contará com lançamentos pontuais de álbuns de artistas que buscam carreiras consistentes. O formato híbrido funciona bem também. Ou seja, aquele artista que lança álbuns de tempos em tempos e que, no ínterim, solta alguns singles."

Sobre as lives, vocês já entendiam que as lives (a transmissão on-line dos shows) chegariam em breve? Da perspectiva de janeiro de 2020, lives/transmissões eram algo que vocês projetavam para um futuro próximo?

Ana Garcia: "Para ser bem sincera, como festival de música, não era discutido transmissão online do festival, muito menos lives, festivais online, era algo que estava na nossa nuvem, mas buscando atingir primeiramente emissoras de televisão. Acho que em menos de 5 anos isso seria uma realidade para qualquer festival de médio porte, mas isso foi ressignificado em poucos meses. Agora não consigo imaginar qualquer festival físico sem ter uma entrega online."

Felipe Simas: "Isso sim foi uma mudança de paradigma que a pandemia e a quarentena trouxeram. Live não era algo que projetávamos em nenhum cenário e que, a partir de agora, passa a ser uma realidade mesmo quando tudo se normalizar (ou, ao menos, voltar a ser o mais próximo do que era antes)."

O que aprendemos com essas lives de 2020? O que deve ser mantido até mesmo quando o presencial, tão importante, puder voltar?

Ana Garcia: "É preciso aproveitar essa possibilidade de atingir pessoas de qualquer parte do mundo. Mesmo sem transmitir seu evento completamente, ter conteúdos exclusivo online já é algo interessante, mesmo para pessoas que estão na sua cidade, mas ainda não querem ir a aglomerações. Imagino que todos os festivais se tornarão híbridos."

Felipe Simas: "Esse lance de lives super produzidas e de dimensões gigantescas foi um fenômeno quase que exclusivamente brasileiro. Lá fora, grandes artistas faziam lives caseiras em seus instagrams. Algo informal para acalentar milhões de pessoas quarentenadas. Grandes produções também existiram no exterior, mas se resumiam em reunir pequenos vídeos caseiros de muitos artistas, sempre com o objetivo de arrecadar fundos imediatos para causas sociais e sanitárias. Já aqui no Brasil, o patrocínio de grandes empresas para grandes artistas, apesar de ser de grande valia para o fomento da atividade artística, praticamente aniquilou a imensa maioria de pequenos e médios artistas cuja visibilidade diminuta não era de interesse das marcas patrocinadoras. Mesmo com o descaso total do poder público (que ignorou solenemente a massa de trabalhadores do mercado do entretenimento, responsável por uma boa parcela do PIB nacional), a iniciativa privada não foi capaz de achar um denominador comum que atendesse à classe artística como um todo pulverizando investimentos entre artistas de todos os tamanhos. E a não-cobrança de ingressos para lives criou uma cultura de consumo gratuito desse produto que deixou na mão o artista menor que não tinha condições nem de conseguir patrocinador e nem de cobrar ingresso pela sua live (com o risco de ser "cancelado" pelos seus próprios fãs). Infelizmente, quem acaba pagando o preço por essa cultura enraizada de que seria uma petulância o artista cobrar pelo seu trabalho são os artistas de menor expressão. Por isso, o que se faz urgente mesmo é um trabalho de conscientização do valor e da importância da arte na vida das pessoas, assim como na economia de um país. Mas, enfim, para finalizar, o que parece estar se configurando aos poucos para quando os shows presenciais retornarem, serão as lives com cobrança de ingressos que farão com que shows possam chegar, de certa forma, em lugares em que a turnê "física" do artista por algum motivo não conseguirá contemplar."