Longão #1: O terraplanismo musical de Adam Levine, novas bandas e as bolhas
Sem tempo?
- Adam Levine disse que as bandas estão em extinção
- E é claro que muita gente ficou incomodada com o comentário do vocalista do Maroon 5
- Mas o que fez o músico não é necessariamente uma novidade
- Ele se juntou aos terraplanistas musicais, aqueles que negam a existência de artistas, bandas e movimentos porque os desconhece
- Afinal, como enxergar novas bandas se você se mantém com os olhos (ou ouvidos) fechados?
Adam Levine, vocalista de uma banda, o Maroon 5, disse que bandas estão em extinção.
Se você não entendeu de onde o músico, ex-jurado do The Voice norte-americano, tirou essa ideia, sente-se confortavelmente e venha comigo neste que é o primeiro Longão desta coluna.
Sim, "longão" porque é um texto longo, mesmo, sem grandes mistérios. É uma seção semanal (publicada aos domingos por aqui) que vai na contramão de alguns preceitos do que é "texto para internet" surgido na virada da década de 2010, de que tudo precisava ser rápido, curto e dinâmico.
O crescimento de podcasts (com formatos analíticos, mas ainda em tom de conversa) e a das newsletters que misturam olhares pessoais para o mundo com textos mais leves e informativos apontam para o contrário: quer dizer, quem tá na internet gosta de se manter informado rapidamente, mas também consome conteúdos mais longos.
Bora para o primeiro Longão - ah, e ao final, você encontra também as "curtinhas", que são dicas de músicas, discos, livros, filmes, séries, enfim, coisas que eu achei massa, descobertas ao longo da semana. Sente-se em algum lugar confortável, pegue um café quentinho e vem comigo.
Vem cá, Adam, de onde você tirou que bandas estão em extinção? Quer dizer, eu até posso entender o que levou o vocalista de uma banda (???) a dizer algo assim, mas, antes, vamos ao contexto.
No início desta semana, o cantor do Maroon 5 deu uma entrevista para o Zane Lowe, que é um dos hosts da Apple Music, conhecido por fazer o tipo "queridão" com os artistas, sempre com sorrisos, e dono de uma forma amigável de conseguir boas aspas dos entrevistados.
Em dado momento, enquanto Levine trocava essa ideia sobre "Beautiful Mistakes", single do grupo lançado na sexta (5), em parceria com a Megan Thee Stallion, o artista disse que bandas eram tipo uma raça que estava acabando.
"Sinto que não existem mais bandas, sabe? Isso é algo que me deixa meio triste. Não existem mais bandas, eu sinto que é tipo uma espécie em extinção."
Ele falava sobre o início do Maroon 5 - quando a banda, diga-se de passagem, era realmente boa e soava como uma trilha sonora para manhãs solitárias, chuvosas e pós-relacionamento. Ao perceber a bobagem dita, Levine até tentou remendar as coisas.
"Quero dizer, ainda existem várias bandas, mas talvez elas não estejam tão em evidência, em destaque no pop, mas eu gostaria que existissem mais algumas dessas por perto."
Ele tá errado?
O dono dos maiores falsetes da música pop atual (leia-se como elogio ou crítica, você escolhe) está obviamente enganado. A turma toda do Twitter fez questão de causar um rebuliço indicando quantas bandas e/ou grupos contrariam a ideia estapafúrdia de Levine.
Podemos ir de artistas do Kpop ao Greta Van Fleet, para falar dos jovenzinhos que se arriscam ainda a fazer um som com guitarra - coisa que Levine chegou a fazer lá no comecinho da carreira.
Se você olhar para o top 50 global do Spotify hoje (escrevo este texto na noite de sábado, dia 6), verá que de fato são poucas as bandas/grupos presentes ali. O Silk Sonic, projeto do Bruno Mars com Anderson .Paak pode ser considerado uma banda, certo? BTS está lá também, com "Dynamite". A ótima Glass Animals, com "Heat Waves", meio que encerra a lista por aí.
No Brasil, a coisa não é muito diferente, embora, por aqui, as paradas mais populares sejam dominadas por duplas de sertanejo ou piseiro, como os incríveis Barões da Pisadinha. Grupo, daqueles cheios de gente, mesmo, tem o pagodão do Menos é Mais.
Em 2002, quando Levine surgiu com o álbum "Songs About Jane" - saudade desse disco, aliás -, o grupo chegou a liderar a parada dos Estados Unidos, mas não esteve entre as 100 músicas mais ouvidas daquele ano. O que mudou em 2007, quando saiu o "It Won't Be Soon Before Long", e a faixa "Makes Me Wonder" e foi a 13ª música mais ouvida naquele ano.
Em nenhum momento, Levine falou exatamente das paradas, era algo mais de se sentir sozinho como uma das últimas bandas existentes.
Algumas são as questões capazes de explicar o motivo, a razão ou a circunstância de Adam Levine realmente acreditar que bandas não existem mais.
Aí que quero chegar. O problema de Adam Levine é...
A bolha!
Um dos maiores dilemas da renovação da música é a existência de bolhas cada vez mais difíceis de estourar. Ao falar que bandas "estão em extinção", Levine soou como aquele cara de meia-idade que curte as mesmas músicas de rock dos anos 70 e 80 e ignora a existência de novos grupos.
Tem problema nisso? Olha, euzinho diria que sim, um monte de novas bandas de rock que são excelentes e tentam conseguir atenção da "nação roqueira", também. Mas não é exatamente um pecado ouvir a mesma música o resto da vida?
O problema é desmerecer alegar a inexistência. Aí que vou chegar no ponto central da história toda.
Terraplanismo musical
Negacionismo é escolher negar algo para escapar da realidade desconfortável ou alguma verdade. Dizer que não existem novas bandas é tipo afirmar que a Terra é plana. É dizer, sem qualquer comprovação científica, que esses grupos não existem só porque não está vendo ao seu lado.
"Se eu não vejo, não existe" é dos maiores absurdos do mundo moderno e tão global e conectado quanto o nosso. Isso chega a ser surreal - e mortal, no caso da pandemia do covid-19, por exemplo.
Voltando ao Adam Levine, mas nem tanto, uma das armas do negacionismo é a deslegitimação da imprensa como uma fonte de informação confiável e verdadeira. Quando um presidente diz que uma notícia publicada, apurada, checada e confirmada é fake news, ele cria uma segunda verdade. A dele, a paralela, simplesmente ao negar a existência de algo que o deixa desconfortável ou só por ser contra o que quer.
Trump fez isso nos anos de presidência dos Estados Unidos, por exemplo. Atacou a imprensa de todos os modos para fazer com que o eleitorado dele simplesmente aceitasse o que ele dizia e não consumisse a informação mais próxima da verdade.
Qualquer semelhança com Bolsonaro e as vociferadas dele contra os jornais e emissoras de TV não é uma coincidência.
Vocês estão acompanhando até aqui? Pois bem, porque agora vou dar salto que vai parecer exagerado e eu entendo que será um grande, mesmo.
A era dos algoritmos
Ouvir o que Adam Levine falou sobre a ausência de bandas mexeu diretamente com o jornalismo musical, no fim das contas. Toda vez que um negacionista musical diz "que não se fazem mais bandas como antigamente", sinto que uma parte de mim morre com isso.
O jornalista que escreve sobre música, entre as suas funções, tem a de ser uma espécie de curador. De mostrar o que está acontecendo fora do radar de quem escuta. Isso tinha uma importante gigantesca quando existiam poucas fontes de informação.
Você, millenial, pense como se uma nova música em um mundo sem internet? Rádio, televisão, jornais e revistas eram fontes primordiais de informação. A indicação de amigos também era importante, mas como esses amigos descobriam essas novas músicas? Se não fosse por algum veículo jornalístico, era pela indicação de um dono de loja de discos, coisas assim.
Na era das bolhas, essa que a gente vive agora, quando alguém só se comunica com outros que ouvem as mesmas coisas por conta dos algoritmos que buscam semelhanças óbvias demais, essa pessoa está completamente fechada para o novo. A visão de mundo fica restrita ao círculo de pessoas que literalmente consome a mesma coisa.
Aí entra o papel do jornalista, entende? De escrever, contar em um vídeo de Instagram, em levar aquela novidade para furar a bolha de alguém. Quando isso rola, é mágico.
Se Adam Levine lesse, sei lá, alguma publicação de música ou mesmo a seção de cultura de jornais como o The New York Times ou o L.A. Times, ele conheceria uma penca de artistas e saberia da existência de bandas e grupos enormes, apesar de completamente fora da bolha dele.
Existe, é bom dizer, um movimento de artistas e criadores que estão produzindo música dos próprios quartos, sozinhos, geralmente com estéticas e letras bem intimistas, mas falarei disso em algum Longão mais para frente. Se Levine se informasse sobre música, talvez ele conhecesse.
Então, o que o vocalista do Maroon 5 ganha com esse negacionismo? Rodeado de paparicadores, ele deixa de enxergar novidades musicais importantes e segue achando que a sua banda é cool e única. E a verdade, mais dolorosa de se aceitar, é que o Maroon 5 não é único, há uma porção de artistas que sabem cantar em falsete e tocar um sonzinho pop pré-balada de sábado à noite.
Escolher propositalmente se cegar com esse mundo de informação que a gente tem hoje em dia - já navegou pelas playlists de curadoria das plataformas de streaming como Spotify, TIDAL, Apple Music e Deezer? Tem coisas realmente ótimas ali que você talvez jamais conheça porque frequenta as mesmas bandas há 30 anos.
E, de novo, o problema não é ouvir a mesma coisa todo dia - como já reclamou Julian Casablancas, do The Strokes, em "Under Cover of Darkness": "Everybody's singing' the same song for ten years". A questão é anular a existência do resto só porque você quer. A verdade, meu caro Levine, está lá fora, como já dizia o pessoal do "Arquivo X" (aliás, saudade Arquivo X). É só dar uma espiada pela janela e olhar além da mansão Los Angeles.
Sim, decidi escrever o primeiro Longão para justificar a sobrevivência, ainda que capenga, do jornalista de música. Escrever de música não dá milhares de cliques, não é um sucesso de audiência, é um trabalho de formiguinha de conseguir se sustentar uma existência em uma internet que precisa de números gigantescos, mas é necessário.
Vai soar brega, mas vou dizer mesmo assim afinal, como diz o aviso automático da coluna, "Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL": a vida de alguém pode mudar ao descobrir um novo disco favorito; ou a música que tocará no seu casamento já existe, você só não conhece ainda.
Deixando a emoção de lado, o que quero dizer é que negar a existência por desconhecimento coloca você mais próximo de quem acha que realmente a Terra é plana. E você, meu caro progressista, não quer isso.
Curtinhas:
"Recital Instrumental", do BaianaSystem
A espetacular banda dona de um dos shows mais deliciosos de se aglomerar quando a gente podia fazer isso está lançando o novo álbum deles, de nome "OXEAXEEXU", em partes. Depois de soltar o primeiro ato do disco, "Navio Pirata", chegamos à segunda parte dessa história: delirante e, de alguma maneira, mais contemplativa. Dá o play e se aglomere no campo da imaginação aí.
Um Príncipe em Nova York 2
O príncipe Akeen, interpretado por Eddie Murphy, volta para Nova York para conhecer o filho e também herdeiro de Zamunda. Dizem que se você não assistir achando que é um filme do Jean-Luc Godard, a produção não decepciona.
Fogo no parquinho indie
A espertíssima banda mineira Lupe de Lupe soltou "Goiânia", primeiro single do próximo álbum deles, o quarto da carreira, o "Trator", a ser lançado pelo selo Balaclava Records. A faixa, cheia daquela sujeira que a gente adora, tem versos beeem contundentes sobre uma das cenas mais importantes do alternativo brasileiro da capital de Goiás.
Papai, St. Vincent está de volta
Uma doiderinha de sintetizadores dançantes, com vocais sobrepostos marcados por um groove interessantemente robótico. É isso que você pode esperar do retorno de Annie Clark, mais conhecida como St. Vincent, em 'Pay Your Way in Pain", do já aguardado sexto álbum dela, o "Daddy's Home".
Allen v. Farrow
Se você não está acompanhando a história da série documental da HBO sobre Woody Allen, corra que ainda é tempo. O documentário dirigido por Kirby Dick e Amy Ziering, é simplesmente demolidor ao mostrar a relação do cineasta com a ex, Mia Farrow e com a filha adotiva Dylan. É preciso ter estômago para acompanhar algumas narrativas.
Voltamos na semana que vem com mais uma leitura longa para ocupar um domingo chuvoso.
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