Justin Bieber vai de Ursinhos Carinhosos a Martin Luther King em 'Justice'
Talvez o leitor mais jovem não saiba quem são os Ursinhos Carinhosos, mas uma única audição de "Justice", o novo álbum de Justin Bieber, do começo ao fim, pode apontar para o lugar certo.
Os Ursinhos Carinhosos povoaram os sonhos da criançada pelas histórias cheias de fofura e corações multicoloridos disparados das barriguinhas redondas dos bichinhos.
Justin Bieber decidiu olhar para o caos que está o mundo para criar "Justice", lançado hoje (19), um álbum de músicas com muita consciência social, autoajuda e amor, mas cujo discurso é transformado em algo colorido, inocente e mais doce do que é a vida real.
Aqui vai vídeo da abertura da animação de Os Ursinhos Carinhosos para inspirar vocês também:
Se "Changes", o álbum de 2020, foi um salto equivocado e distante daquele Justin ousado e arisco que conquistou a vida adulta em "Purpose", "Justice" é um disco mais consciente socialmente, mesmo que pouquíssimo inspirado.
É honesto, contudo.
Em vez de bancar a ideia de ser um cara mau, Bieber quer contar para todo mundo que está no time mocinhos.
Com a inclusão de um discurso de Martin Luther King Jr., em "MLK Interlute", o canadense prova ter lido os noticiários e saber que o mundo está em pedaços e questões raciais são primordiais.
Com um time excelente de participações, Khalid, Chance The Rapper, Daniel Caesar, Burna Boy, entre outros, Justin Bieber expõe todos os seus privilégios, mas não consegue criar temas a altura dos convidados. Um desperdício.
A verdade indigesta é que "Justice" é um álbum com metade das músicas descartáveis (até o interlúdio, que é a sétima canção, tudo poderia voltar para o computador de Justin e lá ficar, esquecidas do mundo).
"2Much" e "Deserve You", curiosamente, citam "cair no sono" e dormir, de modo que imagino ser esta a vontade de Bieber em vez de se inspirar para compor aqueles versos. Em "As I Am", ele se derrete com um discurso de "você acreditou em mim quando ninguém mais acreditou".
A verdade é que o que você ouvirá nas músicas a seguir soa em grande parte como uma redação de um guri do ensino fundamental com o tema "o que é injustiça?".
Entre versos sobre encontrar o amor da vida, seja este uma garota ou uma divindade, Bieber engrena só depois do dito interlúdio, que é a sétima faixa, e é capaz de mostrar ótimas canções pop.
"Hold On", um dos quatro singles que antecederam "Justice", é uma canção realmente boa - ritmo, refrão que gruda, alguma inovação melódica, uau!
"Die For You" é daquelas músicas construídas para crescerem - pop de autoajuda precisa desse tipo arranjo para ganhar a confiança do ouvinte. Começa tímida, ganha explosões dignas de filmes de Hollywood e chega ao fim com uma mensagem inspiradora. "Eu morreria por você", entrega-se, Justin.
A vibe anos 80 de "Justice" realmente aparece a partir daqui. Uma estética que deu tão certo em discos infinitamente mais ousados, como "Future Nostalgia, de Dua Lipa, e "Blinding Lights", do também canadense The Weeknd, mas que se encaixa com as habilidades de Bieber como intérprete.
"Somebody" parece ter saída, aliás, do álbum do The Weeknd, por conta do uso da bateria seca que entrega a semelhança entre ambas. Claro, Bieber não tem a malícia do artista de R&B alternativo que foi esnobado e esnobou o Grammy, mas tudo bem.
Acústica e eletrônica (pois é!), "Ghost" vai conquistar estádios quando a gente puder voltar a se aglomerar. "Tenho mais saudade de você do que da vida", canta Bieber.
"Peaches" e "Loved By You" são decepções, mas só porque criaram expectativas altíssimas em torno delas. Na primeira, cantam Daniel Ceasar e Giveon (o primeiro é um dos artistas mais interessantes do R&B atual, o segundo está no topo da playlist de virais no Brasil no Spotify), mas a participação é completamente subaproveitada em um coro gospel.
Já o potente Burna Boy parece sem fôlego e desaparece em "Loved By You", o que é uma pena. A música é boa, só não faz justiça à presença do artista, um dos feats mais quentes e disputados dos últimos anos, ao lado de Bieber.
As coisas melhoram muito em "Anyone", música cheia de energia gospel e uma pegada de redenção.
Redenção, mesmo, é o que busca Bieber em "Lonely", música com as participações de Benny Blanco e do incrível Finneas (o irmão e produtor de Billie Eilish). A faixa que encerra "Justice" é definitivamente a música mais honesta do álbum.
Bieber canta sobre a própria solidão. Fala sobre ter tudo, mas não ter nada. Diz estar arrependido do passado ("é como se minha casa fosse feita de vidro", canta), e perdido entre tantas escolhas erradas feitas diante da fama e grana adquiridos tão jovem.
Poucas vezes artistas do pop permitem esse tipo de abertura.
Claro, ainda é Bieber cantando do alto do seu castelo, os dramas do menino branco e ultra rico, mas soa mais honesto do que o discurso raso de autoajuda do início do álbum.
O problema de ter uma música tão boa e honesta para encerrar o disco é que ela nos faz pensar "por que demoramos tanto para chegar até aqui". E ainda esvazia o discurso ouvido ao longo desta jornada.
"Lonely" é real, é crua, é poderosa e mexe com a gente. É tudo o que o restante das músicas apresentadas no álbum tentou, mas não conseguiu atingir.
Com "Justice", Justin Bieber mostra atenção com o estado do mundo e com as tensões raciais, mas a visão apresentada aqui é distorcida, como um reflexo de uma sociedade que embeleza a crueza das coisas com filtros bonitinhos de Instagram.
Aliás, "Justice" é isso: o mundo em caos retratado com um filtro de Ursinhos Carinhosos e postado em um story de Instagram.
Tudo é simplificado, excessivamente colorido e será esquecido em 24 horas.
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