A única coisa boa de 1964 foram esses discos. E olhe lá
Alceu pegou o celular logo de manhã animado. Recebeu diversas mensagens hoje cedo, dia 31 de março. "Feliz aniversário da revolução", diziam os textos e desenhos toscamente criados, como se fossem feitos por um estudante do nível básico do Microsoft Paint - possivelmente, pensando aqui, talvez sejam feitos por estudantes do nível básico de Paint.
Em outras mensagens, lembravam outra data: 31 de março também era seu aniversário.
Levantou-se apressado, porque tomara muita água na noite anterior antes de dormir desesperado pela saída da negacionista Sarah Andrade, do BBB 21.
De tão ansioso, mantinha o celular em uma das mãos enquanto urinava aquele xixi dos justos, o melhor deles, o primeiro do dia.
Encaminhou a arte sobre o tal "aniversário da revolução" para os grupos de WhatsApp enquanto realizava o ritual sanitário. Com uma mão só selecionou os dois grupos da família (da esposa e o grupo da família dele), os três dos cinco grupos de trabalho, os dois do futebol semanal para enviar o conteúdo.
Ufa. Exausto, entre as mensagens sobre a tal revolução e responder aos desejos de parabéns, embananou-se enquanto fazia a higiene do órgão. Canhoto, segurava o celular com a mão direita, que não é a boa, daí já viu.
Deixou cair o aparelho no vaso sanitário e gritou um palavrão.
Que doce ironia.
Dia 31 de março de 1964 não é aniversário de revolução. Não é data para se comemorar. É data para se lembrar, sim, mas para querer ver cada vez mais distante. Um recorte de um passado que se não é possível mudá-lo, que seja lembrado para nunca ser mais repetido.
Dia 31 de março de 1964 marca o início da ditadura militar no Brasil. O início de anos de chumbo, de falta de liberdade de expressão e de outras tantas liberdades tiradas por um governo autoritário e golpista.
Infelizmente, de golpe, a turma que ocupa Brasília entende.
O que não entende, Alceu e tantos outros, é a gravidade de chamar golpe de revolução. Foram 20 mil pessoas torturadas pela ditadura. Outras 434 pessoas foram mortas ou desapareceram durante o período no Brasil, de 1964 a 1985, segundo levantamento da Human Rights Watch.
Alceu, fã das piruetas de Bolsonaro no combate à covid-19, nega a vacina, usa máscara só quando pedem e tudo mais.
Agora, o aparelho celular com o qual espalha as me****s está no vaso sanitário, onde parece ser o seu lugar, de fato.
Para não dizer que não há nada de bom para ser lembrado de 1964, vamos lá.
Em janeiro, no nosso verão e antes do abominável golpe, Brigitte Bardot, a atriz, veio ao Brasil e fez um estrago. TODOS queriam Brigitte, que se "escondeu", mas nem tanto, no balneário de Búzios, no Rio de Janeiro - e, dizem, foi a visita da francesa que criou o hype hoje brega em torno do local.
Também em janeiro de 1964, nasceu Patricia Pillar, atriz brasileira que encanta a gente até hoje na TV.
Foi o ano em que foram lançados bons discos, embora não essenciais, de grandes artistas da música mundial.
A Beatlemania chegou em peso em 1964 quando os quatro jovens de Liverpool desembarcaram nos Estados Unidos. Foi um ano em que vários álbuns dos Beatles foram lançados também - destaco "Beatles for Sale" e a música "Eight Days a Week", porque atualmente minha semana parece ter oito dias (todos úteis!).
Quer outro? Foi em abril de 1964 que os Rolling Stones lançaram o primeiro álbum cheio. Na época, chamavam aquelas bolachonas de LPs, ou long plays. Mas os Stones ainda eram gurizinhos, faziam mais covers do que tocavam músicas originais e surfavam na onda do rock and roll.
Roberto Carlos lançou o álbum "É Proibido Fumar", cuja música que dá nome ao disco e a primeira da tracklist é famosa até hoje. E ganhou uma versão mais jovem e rebelde. "É proibido fumar", cantam os artistas. "Maconha!", vibra a plateia, em resposta, possivelmente com um baseado em mãos. A ironia da vida, de novo, percebem?
Citarei três discos incontestáveis, para não só falar mal de 1964.
"The Times They Are a-Changin'" é o terceiro álbum de Bob Dylan. Atento às questões sociais, crítico ao governo e às injustiças, o bardo Dylan criou uma de suas obras-primas, a música que deu nome ao álbum.
Também é o ano de "Getz/Gilberto", o trabalho que une o saxofonista estadunidense Stan Getz e João Gilberto, o nosso, o gênio do violão mudinho e da voz escolhida. Essa fusão de jazz e bossa nova ganhou até Grammy de melhor gravação do ano, derrotando "I Want to Hold Your Hand", dos Beatles, e "Hello, Dolly!", de Louis Armstrong, com "Garota de Ipanema".
Por fim, vou escolher um álbum que logo nos convida a esquecer que 1964 existiu. "A Love Supreme", álbum genial de John Coltrane, foi gravado em dezembro daquele ano maldito para os brasileiros e lançado em janeiro de 1965.
O amor supremo - o oposto o que se viu no Brasil do fatídico 31 de março de 1964 a 15 de março de 1985.
Não há nada para comemorar sobre 1964. Talvez estes discos, mas olhe lá. Prefiro safras de outros anos.
Certas ideias (e certas memórias) merecem ficar no mesmo lugar onde jaz o celular do negacionista Alceu.
No vazo sanitário.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.