Música dos Beatles em 'Império' resgata sabor das músicas de churrascaria
Enquanto Sebastião serve uma fatia finíssima da melhor picanha da casa ao cliente de olhos já anuviados pela quantidade exagerada de carne ingerida, um jovem ao violão embala o calorento almoço de toda a clientela da churrascaria da zona norte de São Paulo com versões econômicas, em voz e violão, de clássicos da música popular mundial. De Cazuza a Pink Floyd, o repertório do rapaz é vasto. Vez ou outra, temos até uma música dos Beatles aí.
Tão parte da cultura brasileira quanto a existência das churrascarias em todo território nacional (e não vou entrar aqui no debate sobre veganismo ou consumo de derivados de animais) é a trilha sonora desses locais (e também de bares) criada desta maneira, despida de outros instrumentos e executada sem que qualquer indivíduo realmente preste atenção no artista.
A opção estilística é ousada e já ganhou destaque no gigantesco cenário nacional. Em 2001, a turma pós-30 vai lembrar bem, Emmerson Nogueira explodiu com versões meio sebosas de "Wish You Were Here" (do Pink Floyd), "Hotel California" (Eagles), em um disco de nome criativamente instigante: o "Versão Acústica".
Mesmo assim, o álbum vendeu mais de 100 mil cópias e foi tratado como galinha dos ovos de ouro numa virada de século em que a indústria fonográfica via minguar as fontes de receita por conta da pirataria e se agarrava em qualquer coisa para não se afundar de vez.
A crítica musical, tão defasada, usa o termo "música de churrascaria" para esse tipo de som de forma pejorativa, o que, cá entre nós, considero ser de uma petulância sem tamanho. Oras, requer brios, no mínimo, criar uma trilha sonora tão esquecível para momentos que serão, por sua vez, lembrados pelo nosso intestino dias a fio enquanto ele tenta digerir aquelas garfadas vorazes de pedaços de cupim, linguiça suína e de batata frita do buffet.
Mas e a novela 'Império'?
E isso nos leva à nem-tão-nova-assim novela das 21h da TV Globo. Desde segunda (12), o Comendador está de volta, com o ótimo Alexandre Nero e grande elenco (com exceção, talvez, de Chay Suede), na reprise especial de "Império", exibida originalmente entre julho de 2014 a março de 2015).
A trama se passa em torno do tal personagem de Nero, um rapaz que se tornou multimilionário em uma trama envolvendo diamantes, e responsável bombar o turismo na Chapada do Abanador, em Minas Gerais, onde foram gravadas grande parte das cenas que diziam ser no Monte Roraima, por conta das paisagens deslumbrantes exibidas na tela da TV. Entenda, algumas cenas foram gravadas no Monte Roraima, mas não todas por uma questão de logística.
Não encontrei na web o nome de quem fez a curadoria da trilha sonora nacional e internacional da novela (se alguém o conhecer, por favor, entre em contato), mas há muito suco da FM brasileira ali.
Na lista de música nacional, nomões como Gilberto Gil (um dos maiores "nomões" de todos os tempos), Os Paralamas do Sucesso (com "Aonde Quer Que Eu Vá"), Ney Matogrosso ("Amor Perfeito") e Ivete Sangalo ("Beijo de Hortelã"), dividiram a cena com Ludmilla (com o grande hit "Hoje"), Thiaguinho (com "A Batucada Te Pegou"), entre outros.
A versão "trilha sonora internacional" tinha de Coldplay (com a fraquinha "Magic", infelizmente, já que a banda de Chris Martin tem um cancioneiro tão saboroso e melancólico quanto uma fatia de um bife de ancho que esfria no prato enquanto o dono vai se servir no buffet de saladas) a Ed Sheeran (pré-ultra sucesso, mas com a badalada "Sing"), passando por um surpreendente Silverchair (banda de pós-grunge dos anos 2000, com "Miss You Love").
Não se a leitora ou leitor mais jovens se lembram, mas a Globo lançava os CDs com as trilhas de suas novelas (antes disso, vendia discos de vinil - tenho alguns clássicos aqui em casa, aliás). E esses álbuns vendiam feito água, o que faz sentido, já que todo dia aquelas músicas martelavam na cabeça do povo brasileiro no horário nobre.
Mas e os Beatles?
Em comum, os CDs de músicas nacionais e internacionais trazem um hit. Dos Beatles. Assinado por John Lennon. Na fase mais brilhante da banda, dizem alguns. Em um híbrido de nacional e internacional que justificava a existência em ambas as coletâneas.
Era uma versão de uma das mais importantes músicas da história dos Beatles nos moldes de "música de churrascaria" cantada por um artista nascido em Londres, mas brasileiro de coração.
Era "Lucy In The Sky With Diamonds", faixa do complexo e estoura-cabeças álbum "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band", de 1967. Esse é conhecido como o primeiro dos trabalhos dos Beatles indo fundo na pira deles com drogas psicodélicas e tudo mais. Há quem o classifique como o melhor dos Beatles, mas esta também é uma disputa tola. Para mim, cada disco dos Beatles é o melhor disco dos Beatles, dependendo do seu estado de espírito naquele dia.
De volta à "Lucy In The Sky With Diamonds", o próprio nome da música seria um acróstico, dizem os teóricos de plantão, para LSD, droga bastante popular desde o final dos anos 60 até possivelmente hoje, não sei dizer.
John Lennon, tão propenso a falar de referências às drogas nas suas músicas, sempre negou que a música tratasse de LSD. Dizia ter se inspirado em um desenho feito pelo filho sobre uma colega de escola de nome Lucy.
Pouco importa, neste texto, a origem do música em si, mas o fato das letras narrarem momentos doidões demais, com "céu de marmelada" e "garotas com caleidoscópios no lugar dos olhos". Cenas como estas pode ser apavorante se for recriada nos moldes de Tim Burton ou de "Coraline".
Curadoria nonsense ou genialidade?
O primeiro questionamento que o retorno de "Império" me traz novamente é: por que raios decidiram por usar "Lucy In The Sky With Diamonds" na trilha sonora de uma novela sobre traições e uma fortuna construída com diamantes.
Ops, espere um segundo. Teria sido a escolha simplesmente motivada pelo fato de o folhetim escrito por Aguinaldo Silva girar em torno de diamantes e a letra de John Lennon falar também em diamantes?
Talvez "Lucy In The Sky With Diamonds" seja uma das músicas mais populares do mundo com "diamantes" no nome, embora não esteja sequer nas primeiras respostas em buscas no Google, seja em português ou em inglês.
Em português, a busca por "música diamante" traz "Diamante", de 2017, da cantora gospel Damares, e uma citação de "Ouro e Diamante", da dupla sertaneja Fernando & Sorocaba.
Ao tentar em inglês, por "music diamonds", a primeira opção é a maravilhosa "Diamonds", de Rihanna. Também podemos ouvir "Diamonds", de Sam Smith, e damos de cara com a uma curiosa matéria do site da revista estadunidense Billboard que lista "20 músicas sobre diamantes" que vale a curiosa leitura.
Ou seja, opções não faltavam para fazer a conexão entre letra de música e os tais diamantes do Comendador. O que me leva a debater internamente se essa conexão entre Beatles e "Império" foi uma escolha nonsense ou genial.
Para mim, são ambas ao mesmo tempo.
E o formato de churrascaria?
Talvez aí esteja o grande erro da indústria fonográfica naquela virada de 2014 para 2015, quando a novela foi ao ar. Faltou amparo para fazer a volta das "músicas com versões de churrascaria" para as rádios.
Ter uma música-tema da maior novela da maior emissora do País é um começo, mas não poderia ser só isso. Na versão do folhetim que você pode assistir às 21h de segunda a sábado, quem interpreta o clássico dos Beatles é Dan Torres.
E Dan parece ser um cara legal, dono de uma boa voz e esforçado. Nascido em Londres, filho de pai brasileiro e mãe inglesa, o rapaz fez uma participação no reality show musical "Fama", muito antes da franquia "The Voice" ser um fenômeno de audiência mundo afora. Em 2003, Dan não vendeu a disputa, mas aproveitou a exibição na Globo nas dez semanas em que esteve no programa para aparecer e garantir um contrato com uma gravadora depois da competição.
Fez álbuns com covers e outros autorais, cantou em outras trilhas de novela, mas Império era realmente uma grande chance.
Mas o Brasil não estava preparado, ainda, para a volta das músicas de churrascaria. Talvez, a sociedade que se preparava para um golp? Ops, se preparava para um impeachment de Dilma tivesse outras coisas a fazer e a corajosa e desnuda versão de Beatles ao formato acústico foi logo esquecida.
Poderíamos ter um novo fenômeno como Emmerson Nogueira aí, disputando espaço entre sertanejo, funk e pisadinha nas paradas do Spotify. Músicas clássicas de astros gringos com idade para serem vacinados no estado de São Paulo jamais seriam esquecidos por uma nova geração de fãs sedentos (e esfomeados). Uma geração inteira teria sido formada com covers tocadas em violões de cordas engorduradas pelos dedos ensebados de instrumentistas que petiscavam pedaços deliciosos de fraldinha mal passada entre uma música e outra. Estou triste com essa possibilidade perdida, brasileiros e brasileiras.
O País, contudo, tem nova chance com a reprise de "Império". Fui checar e, sim, "Lucy in the Sky With Diamonds" está novamente ali. As churrascarias estão fechadas por conta da pandemia do coronavírus, mas qualquer um pode ouvir a cover acústica favorita de casa, mesmo, graças à tecnologia das plataformas de streaming e YouTube que não eram tão fortes em 2014.
Pare de disparar notícias falsas sobre o tal decreto do governo de Sergipe querer confiscar bens da população e faça um bem de verdade à nação brasileira. Escute, do começo ao fim, aos álbuns de Emmerson Nogueira ou de outro artista que opera na mesma fórmula e coloque-os de volta às paradas.
As churrascarias precisam de você para que o futuro próximo resgate os tempos de glória, quando o lugar mais próximo da cozinha era disputado com reservas feitas com dias de antecedência para nunca perder uma única passagem daquela disputadíssima peça de picanha com alho mal passada.
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