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Pedro Antunes

Girl From Rio: Anitta faz funk de boutique perfeito para as vendas de verão

Anitta no clipe de "Girl From Rio" - Mar + Vin/Divulgação
Anitta no clipe de 'Girl From Rio' Imagem: Mar + Vin/Divulgação

Colunista do UOL

30/04/2021 16h14

Sem tempo?

  • Com Girl From Rio, Anitta mexe com as estruturas do universo de Manoel Carlos, Tom Jobim e Vinícius de Moraes
  • O Rio de Janeiro exportado para o mundo mudou. Não é mais aquele de Garota de Ipanema e da bossa nova.
  • Quer dizer: o que Anitta mostra é que ainda temos estas heranças, mas há mais complexidade aqui.
  • Bem-vindos ao novo Rio de Janeiro tipo exportação!

Em Barcelona, em uma loja da Zara que cheira a perfume de laranja, mulheres e homens bisbilhotam looks de cores vibrantes e tecidos leves estendidos pelo labirinto de araras da nova coleção Primavera-Verão, observados pelos vendedores sedentos pelo primeiro contato e pela porcentagem das vendas.

Uma moça pega um vestido, uma bela peça de diferentes tons de laranja e pergunta (em espanhol) à funcionária que se aproxima com um sorriso no rosto. "Você tem este aqui no tamanho médio?"

No som ambiente desta situação não-tão-imaginária-assim toca "Girl From Rio", o novo single de Anitta lançado ontem (29) e já candidato a hit.

O que o som da nossa "girl from Honório Gurgel" tem a ver com uma loja da Catalunha? Tudo, oras.

Anitta vem, desde o projeto Xeque Mate (com clipes de diferentes estilos lançados em sequência), em 2017, preparando o terreno para ganhar o mundo.

Claro, os singles dela já foram recebidos com destaque na imprensa internacional, ela fez aqui e acolá algumas apresentações nos Estados Unidos, também. Mas desde a exportação da bossa nova, não há um movimento de música brasileira tão forte e embasado com o atual momento do pop quanto o funk.

Funk do tipo exportação

Com a ascensão latina (falei mais sobre isso em um texto longo dia desses), a música brasileira dá seus novos passos para deixar as fronteiras tupiniquins mais uma vez. Em vez do popular reggaeton de Porto Rico, temos o funk, um gênero igualmente vindo da periferia, totalmente dançante, safadinho, rebolativo, coxa com coxa e tudo mais.

É, acima de tudo, um gênero genuíno e brasileiríssimo, embora os Rick Bonadios da vida possam discordar (também escrevi isso aqui chamando de "terraplanismo musical"). Pois bem, voltemos ao single "Girl From Rio". A vibe, você vai perceber, é de "Garota de Ipanema" (ou "Girl From Ipanema", para os gringos). Inclusive, Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim, a dupla que louvou a lourice de Helô Pinheiro na música brasileira mais famosa no mundo, são creditados como autores do single de Anitta.

Se dias atrás, houve quem criticasse a exportação do funk ao perceber que o gênero havia chegado ao Grammy com um trecho de WAP remixado pelo produtor Pedro Sampaio, em contraste com a exportação da bossa nova ocorrida décadas atrás, o single de Anitta coloca os dois ritmos no mesmo andamento.

Se é bossa nova que vocês querem, toma aqui: bossa nova com uma batidona grave do trap, mais vagarosa e também sensual, e vocais do R&B.

Durmam com essa, terraplanistas!

Ao contrariar os irritadinhos puristas, Anitta faz o que a vanguarda da música mundial tem mostrado ser o segredo do sucesso: ignorar barreiras geográficas e estilísticas é o futuro. A música contemporânea é fluída, afinal. Neste caso, temos referências musicais vindas dos Estados Unidos, Porto Rico e das favelas cariocas.

Claro, é funk e trap para gringo ver e pra tocar na rádio, beeeem pop, não se engane. Você não encontrará aqui versões pesadonas ou proibidonas. É tudo com faixa etária liberada, obviamente.

O que a funkeira faz é mostrar que as heranças do Rio de Janeiro de "Garota de Ipanema" e bossa nova ainda existem, mas não são o único retrato do Brasil de hoje.

É funk tipo exportação, como aqueles produtos que estamos acostumar a ver no mercado, como "café tipo exportação", coisas assim. Não é exatamente aquele que se consome por aqui, nos bailes de favela, mas é o tipo que desce pela garanta gringa sem arranhar. Não tira os ouvidos de ninguém da zona de conforto.

Qual é o verdadeiro Rio de Janeiro?

Anitta, adoravelmente debochada, faz da letra de "Girl From Rio" um cartão de visitas definitivo para os gringos.

"Let me tell you bout a different Rio
The one I'm from but not the one that you know
The one you meet when you don't have no real"

O que a Anitta diz nesta estrofe é mais ou menos assim: vem cá, deixa eu te apresentar um Rio diferente, um Rio que você não conhece, o Rio que você só conhece quando não tem um real no bolso".

Não estou exatamente no meu lugar de fala aqui, já que minhas experiências no Rio de Janeiro, infelizmente, foram a trabalho, coisa vapt-vupt ou em coberturas exaustivas do Rock in Rio (aliás, saudade do molho à campanha), mas entendo que o que Anitta quer é esfarelar a ideia daquele Rio de Janeiro perfeitinho criado pela propaganda mentirosa compartilhada infinitas vezes por músicas, filmes, propagandas, etc.

Meu estimado e sempre preciso editor aqui do UOL Splash, Osmar Portilho (a identidade secreta do youtuber sabedor de todas as novidades do universo das redes sociais de nome Josmi) disse o seguinte:

"'Girl From Rio' é melhor pro Brasil que qualquer campanha do Ministério do Turismo"
Osmar Portilho

Anitta manda a real. E, em um clipe lindíssimo, ela apresenta a cidade da forma mais honesta que é possível dentro do padrão "tipo exportação", evidentemente.

Ainda assim, ela destrói um tanto de padrões estéticos, dos corpos cariocas às paisagens da Cidade Maravilhosa.

Como fica o ManoelCarlosVerso?

O escritor de novelas Manoel Carlos, de diversos sucessos exibidos em horário nobre na tela da Globo, como "Laços de Família" e "Mulheres Apaixonadas", é também responsável por criar esse estereótipo do Rio de Janeiro filtrado, clean e perfeitinho.

Encantou milhões de brasileiros com um retrato de Leblon de plástico e higienizado a partir de tramas centradas em personagens de nome Helena.

Anitta, com "Girl From Rio", mexe com essa visão do autor. Não desmonta os estereótipos todos, tenho a impressão, porque ela manteve os ares da "Garota de Ipanema" necessários para os gringos ligarem os pontos: "Garota de Ipanema" = Rio de Janeiro = Anitta.

Parece-me uma atualização daquele Rio de Janeiro que parecia de plástico.

Transgressora como deveria ser, Anitta bagunça o Rio de Janeiro de Tom, Vincícius e Manoel Carlos (três homens brancos, veja bem). Desconstrói alguns estereótipos, mistura a bossa nova erudita ao funk sensual e chega à versão mais real possível da cidade - sem se esquecer do objetivo que é se apresentar para o mercado internacional ainda clean e com potencial de alcançar as rádios das boutiques chiques mundo afora.
Pedro Antunes (sim, eu me citei, hahaha)

O veredito?

Precisamos realmente de um?

"Girl From Rio" é uma música contemporânea, que ironiza o estereótipo musical e visual do perfeitinho do Rio de Janeiro com versos inofensivos, jocosos e razoavelmente sinceros - e alguns até divertidamente autobiográficos, como quando ela conta que descobriu ter um irmão crescido (mesmo pai, mães diferentes) e que vive entre amores porque a vida é ótima assim.

É hit, sim. Gigantesco!

"Garota de Ipanema" é usada aqui como um gancho para chamar a atenção dos gringos e ainda contar a própria história, mostrando Anitta como figura moderna e dona da própria narrativa. Sem dúvida, "Girl From Rio" será executada nas lojas de roupas mundo afora - o que é um feito enorme e renderá uma boa grana também.

Mas voluntariei-me, em prol desta coluna, para o teste supremo e avaliar o poder do single de Anitta: descobrir para onde a música pode levar o ouvinte que está fora do contexto carioca.

Deixei "Girl From Rio" no repeat e saí de casa para passear com a minha cachorrinha (uma vira-lata simpática de nome Torrada) pelas ruas do centro de São Paulo.

E, de repente, me senti no Rio de Janeiro. Não elitista, mas ainda parte do ManoelCarlosVerso.

De início, apesar do frio da manhã paulistana, me sentia na beira do mar. O Largo do Arouche se transformou no meu Leblon. Trocaria minha calça de moletom ultra confortável poderia ser um vestido esvoaçante e meu tênis era uma elegantérrima bota de couro sintético (afinal, eu seria uma Helena mais consciente). Me vi um Rio de Janeiro mais carne e osso, diverso e fascinante.

A Torrada, imagino, não entendeu nada. Mas eu posso afirmar: Anitta me transportou para o Rio de Janeiro (o mais real, mas ainda assim cheio de glamour) por alguns minutos.

Se ouvisse em uma loja em Barcelona, teria comprado o look completo e gastado os euros que não tenho com um sorriso no rosto.