Nick Cave lamenta fim da Mercearia. 'Dias mais simples'. E eram, mesmo.
"Eram dias mais simples", escreveu Nick Cave, músico hoje de 63 anos, sobre os quatro anos em que viveu na Vila Madalena, em São Paulo, sobre seus fins das manhãs passados na Mercearia São Pedro, um dos últimos redutos de uma boêmia há muito soterrada por arranha-céus, pela higienização da cidade, pela inflação e, por último, por esta pandemia devastadora.
No site "The Red Hand Files", criado pelo músico australiano para se corresponder com pessoas do mundo todo, Cave foi informado sobre o possível fechamento da "Merça" e questionado do que achava deste movimento.
E o texto, de 321 palavras encharcadas de melancolia e saudosismo (e pode ser lido completo aqui, em inglês), é uma ode aos tempos mais simples para todos nós. Músico dos maiores, apesar de não ser extremamente popular, Cave viveu uma improvável história de amor em São Paulo e com São Paulo.
O que era para ser uma passagem pela cidade para uma turnê com a banda Bad Seeds se transformou quando Cave e a brasileira Viviane se encontraram. A paixão avassaladora entre os dois gerou Luke (nascido em 1991 e, portanto, com 30 anos agora), estendeu da estadia do artista em São Paulo e também originou "The Good Son", o álbum de gravado em um estúdio paulistano, importante por representar uma curva na estética do australiano, lançado em 1990.
Cave, que era conhecido no bairro pelo apelido "Chitãozinho" por conta dos vistosos mullets ostentados até hoje, morava a 300 metros da Mercearia e, certa manhã vez, encontrou com o dono do estabelecimento Pedro Benuthe (morto em 1996), responsável por abrir as portas da Mercearia pelas manhãs.
Conectaram-se rapidamente, apesar de Cave não ter se esforçado tanto para aprender português.
"Todos os dias, por volta das 11 da manhã, eu levava Luke, que na época deveria ter uns 2 anos, para dar uma volta e subíamos até o bar do Pedro. Eu colocava Luke em um banco ao meu lado e comíamos pastéis de queijo. Pedro ficava brincando com Luke até os trabalhadores chegarem para almoçar. Em seguida, nos mudávamos para uma mesa na calçada do lado de fora e sentávamos ao sol. Eu lia e escrevia algumas coisas e Luke chupava sua chupeta ou um [pirulito] Chupa Chups que Pedro havia lhe dado às escondidas."
Adorável, não é?
"Acho que escrevi algumas músicas neste período, como 'The Ship Song', 'Papa Won't Leave You, Henry' e 'Foi Na Cruz', mas principalmente eu só sentava ali, fumava cigarros, bebia cervejas e conversava com Luke enquanto ele ficava com seu Chupa Chup e só me olhava e me ouvia."
Os ótimos Carlos Messias e Lucas Lima contaram aqui no UOL a história completa da passagem de Nick Cave por São Paulo. Vale ler para ter mais detalhes sobre essa história maravilhosa.
Reduto de escritores e jornalistas, de mauricinhos e patricinhas, de gente como a gente e gente completamente oposta à gente, mas sempre democrático, a Mercearia pode fechar as portas por conta do litígio entre os irmãos que a herdaram do Pedro que dá nome ao espaço.
Mas o que conta Cave no texto não trata só da Mercearia, embora as lembranças sejam tão paulistanas que qualquer um deve ter uma história semelhante. E aí está o ponto. Costurando o fim da Mercearia e a saudade de Cave, nasce um desejo de voltar no tempo, pelo menos mais uma vez. Todo mundo já viveu esse lapso saudoso-melancólico ao perceber um inevitável fim, qualquer que seja ele.
E talvez a culpa seja da pandemia do coronavírus, mas estas despedidas se intensificaram. Nosso bar favorito virou um prédio ou só fechou as portas porque não pode mais receber ninguém.
Hoje andamos com medo, escondidos sob máscaras, e desviando para o outro lado da calçada quando um sujeito decide assoar o nariz com as mãos. Hoje, a grana está tão apertada que o litro de gasolina está quase mais caro que o litro de cerveja. Hoje, o aluguel de apartamentos no centro da cidade decorados por mofo e cupim custam mais de R$ 2 mil o mês.
Hoje, o seu bar favorito pode estar no seu último dia de funcionamento e talvez você nem saiba para pedir uma última gelada.
Desde que deixou São Paulo, Cave voltou à cidade em turnê somente em 2018, em um show histórico no Espaço das Américas, trazido pela Popload Gig.
Na época, Cave vivia uma nova onda de popularidade por conta da música "Red Right Hand", sucesso na trilha sonora da série cultuada "Peaky Blinders" e com o álbum "Skeleton Tree", lançado um ano depois da morte do filho Arthur, em 2015, então com 15 anos, ao cair de um penhasco, nas proximidades de Brighton, na Inglaterra.
O Nick Cave que voltou a São Paulo não era o mesmo que deixou a cidade. A cidade também não era mais a mesma.
"Aqueles dias na Mercearia eram simples e bons. Foi a melhor época."
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