Era do Remake chega à música e até gritinho de James Blunt vira pisadinha
Enquanto assistia ao filme "Carrie, A Estranha" (na versão de 2013, com Chloe Moretz, não aquela dirigida pelo Brian de Palma), fui esquecendo a sensação de assistir ao original. Talvez fosse pelo fato de que o remake, quando sem propósito, soa falso e de plástico mesmo.
Hollywood ama um remake. Gosta tanto e há tanto tempo que já devem existir mestrados e doutorados a respeito, jornais e sites especializados já fizeram matéria, vídeos no YouTube selecionam piores e melhores remakes, etc.
Tem quem goste, paciência.
Mas na música, o movimento dos remakes era tímido, quase escondido. Não mais.
Alguns fatores ? como pandemia e mercado instável ? estão por trás de uma transformação. As covers, por exemplo, não são mais ferramenta de bandas de tributo, de grupos que tocam em casamentos ou para jovens que estão aprendendo algum instrumento. Virou coisa séria.
De adoradas pela crítica como Céu e Rita Lee, passando pela ascensão da banda italiana Måneskin e dos pagodeiros do Grupo Menos É Mais, todos estão experimentando o saboroso (mas também perigoso) mundo das versões.
'Auuuuuuuuuuu'
Você pode ter escutado a música mais ouvida do Brasil (segundo YouTube e Spotify) sem nunca ter ouvido uma pisadinha na vida.
Isso porque "Coração Cachorro", a delirante nova música de Ávine e Matheus Fernandes, tem o que um quê do sucesso de James Blunt, "Same Mistake".
Ouça o refrão de cada uma delas e entenda do que estou falando. No player abaixo está "Coração Cachorro".
A seguir, "Same Mistake":
Sim, os compositores de "Coração Cachorro" (Felipe Panda, Daniel dos Versos, Felipe Lopes, Breno Lucena, PG Do Carmo e Riquinho Da Rima) transformaram o gritinho característico de James Blunt em um uivado canino. Divertidíssimo, inclusive.
Quando ouvi pela primeira vez a música, há pouco mais de um mês, tinha duas certezas: seria um hit e geraria alguma confusão de direitos autorais.
Acertei na primeira previsão. Na segunda, ainda não. Em contato com a Sony Music, a gravadora de Ávine, recebi a resposta de que o melisma corresponde a 1% da faixa e "outros 99% canção são totalmente autorais".
Tentei contato para o próprio James Blunt, mas ainda não obtive resposta (quem sabe um dia ele).
Mas o ponto deste texto não é o latido embalado por uma pisadinha com requintes eletrônicos e autotune de Ávine e Matheus Fernandes e quantos por cento da música deles citam o inglês.
É sobre o movimento conservador, musicalmente falado, que levou Blunt a virar uma pisadinha.
Não é sequer a primeira vez que isso acontece com "Same Mistake", que há virou "Já Me Acostumei", do Calcinha Preta. A diferença é que, ao que parece, tudo faz parte de um movimento maior na música mainsteam, essa que movimenta bilhões, toca em rádio e está na capa das playlists editoriais mais importantes.
Neste movimento, o tal "nada se cria, tudo se copia", torna-se uma regra ditada (também) pelo medo de errar.
Crise financeira gera instabilidade
Como todo mercado, o fonográfico também depende da grana para girar. E, neste caso, em um meio cada vez mais competitivo (com 60 mil músicas publicadas nas plataformas de streaming por dia), cada erro custa caro.
Com pouca margem para erro, as decisões passam a ser mais conservadoras.
É o que ocorre no financeiro, por exemplo: se a bolsa está instável, juros em alta, etc e tal, a galera corre para colocar seu dinheiro em investimentos mais seguros e menos voláteis, como a indústria da construção civil. Não é por acaso que a construção civil está em alta apesar da crise financeira, política e sanitária do País.
Os maiores sucessos musicais de 2021 são essencialmente conservadores.
Retorno do pop punk
Tome como exemplo o retorno do pop punk (elogiadíssimo e celebradíssimo por este colunista, inclusive). O quanto desse movimento atual - em que uma das figuras centrais na figura do agora produtor e também baterista do Blink-182, Travis Barker - oferece de novidade e o quanto ele entrega de nostalgia?
Apesar dos rostos novinhos e propensos as espinhas dos artistas participantes, o que denota a pouca idade deles, neste duelo, a nostalgia é mais forte.
Mas não estou dizendo que pop punk novo é só uma versão do velho repaginada, pipipi-popopó: há gente ótima como Mod Sun, Yungblud e as bandas incríveis Pinkshif e Meet Me @ The Altar. Mas o mercado, as pessoas dessa indústria, já estavam nela quando o pop punk cresceu nos anos 2000, ok? São os mesmos caras, lá no alto, apetando os botões e assinando os cheques.
E faz parte desta ideia de apostar no seguro. A volta de um gênero que já fez a cabeça da juventude é menos arriscado, neste caso, do que apostar em uma estética inovadora como vimos alguns anos atrás, com a ascensão de jovens de dark pop como Billie Eilish e até Lorde.
A ascensão do Måneskin
Outra banda elogiada aqui, a italiana Måneskin ascendeu ao estrelato e ao topo do mundo com covers. Outro sinal deste conservadorismo da indústria.
É bom repetir para não deixar dúvida para quem tem problema com interpretação de texto: não há nada de pejorativamente conservador neste quarteto desbocado cujo sucesso é um deleite entorpecido por guitarras cheias de músculos e um vocalista andrógino instigante.
O crescimento de uma banda de rock que faz sucesso com um estilo musical bem-sucedido décadas atrás, e inclusive com versões de músicas como "Beggin", originalmente do grupo Four Seasons, e "Somebody Told Me", do The Killers, tem um nome: remake.
Embora as versões dos italianos sejam mais furiosas que as originais, elas ainda são covers.
Entendem o que estou falando? Três anos atrás, haveria espaço no mercado para isso?
O curioso caso de Olivia Rodrigo
O que me chamou atenção no caso de Ávine e "Coração Cachorro", em setembro, foi a ausência do Blunt nos créditos - e o que me levou a buscar a resposta dada pela Sony Music publicada no início do texto.
Meses antes dos latidos de Ávine e Matheus Fernandes ecoarem nos meus fones de ouvido, fui tomado pelo poder de Olivia Rodrigo, a garota que subverteu os padrões da Disney, entregou um álbum visceral (o ótimo "Sour") e se tornou outra sensação da música de 2021.
E foi acusada de plágio.
Enquanto eu alardeava que Rodrigo era mais "rock and roll que muito marmanjo de bandana" (e sigo defendendo a ideia esplanada em outro texto), ela também respondia por apropriação de "Misery Business", do Paramore, no hit "Good 4 You".
A história escalou até o ponto que os integrantes do Paramore serem incluídos nos créditos de "Good 4 U" - e, agora, devem estar felizes da vida pela grana extra caindo no final do mês por conta das execuções da faixa nas plataformas de streaming.
A própria Olivia Rodrigo já havia incluído Taylor Swift nos créditos de "1 Step Forward, 3 Steps Back" por conta da melodia que vem de "New Year's Day", de Swift.
Não era nenhuma novidade incluir o Paramore se fosse o caso, como aconteceu.
Na minha ingenuidade, não sabia que isso era tão comum assim. Mas "Good 4 U" segue uma grande música, mesmo assim.
Mais do mesmo
No início da pandemia do coronavírus, em 2020, o mercado da música congelou. Foram-se os shows. Ficou o streaming.
O comportamento das pessoas ao ouvir música mudou com isso. Embora artistas soltassem cada vez mais música nas plataformas, o público ainda buscava a segurança e o conforto do catálogo que eles já conheciam.
Não por acaso, a audiência de clássicos cresceu nos primeiros meses da pandemia. É aquilo: diante do caos, as pessoas preferem o conforto, aquilo que já é conhecido.
Adorada pela crítica, a cantora Céu anunciou um álbum de covers. Não deixa de ser um movimento ousado, se debruçar sobre a obra de outros artistas e criar uma interpretação autoral para elas, mas esse passo na carreira dela se conecta com o mercado ao redor.
Até Rita Lee, diva máxima, entrou nessa. No caso dela, o filho João Lee convocou DJs para criarem remixes com bases da música eletrônica dos clássicos da mãe.
O projeto "Classix" saiu com o jogo ganho (são ótimas canções, afinal), mas não decepcionou.
Diferentemente do cinema, na música, remake não é sinônimo de sucateamento ? não sempre, pelo menos.
Uma retração conservadora, mas também natural
A paralisação dos shows por mais de um ano, que significavam parte gigantesca (se não quase total) da renda dos artistas, fez também o mercado voltar a olhar para o streaming como salvação da lavoura financeira.
Reaproveitar o catálogo que já estava disponível foi a primeira maneira de descolar uns trocados.
Evidentemente nada é binário e preto ou branco. Durante a pandemia também vimos a ascensão se gêneros como pisadinha. Mas o movimento de busca por músicas de catálogo cresceu.
Pout-pourri de sucessos do pagode dos anos 90, por exemplo, se tornaram essenciais para novos grupos crescerem entre os fãs do gênero. Não é por acaso que vimos o agigantamento do ótimo Grupo Menos É Mais (cuja jornada também foi detalhada nesta coluna).
Percebem que faz muito sentido. Vagarosamente, a indústria escancara que por vezes é mais vantajoso olhar para trás do que para frente.
Escrevi dia desses que a possibilidade de Adele repetir o sucesso dos tempos de "21", seu álbum mais bem-sucedido, lançado no distante ano de 2011, era pequena neste retorno porque o mercado havia mudado.
Mas ela chegou com "Easy On Me", uma música que mantém a justamente a essência daquele álbum de 10 anos atrás: no piano marcante, no drop e no refrão sofrido e potente.
E fez um estrago nos recordes, como fizeram questão de me alertar alguns fãs dela. Sabiamente, ela não inovou em nada ali.
É seguro e confortável ouvir Adele e saber que o mundo pode estar de cabeça para baixo lá fora, mas, no meu fone de ouvido, ela seguirá como sempre esteve.
Medo do novo?
A situação de cada um dos artistas citados aqui, de Adele a Måneskin, de Menos é Mais a Olivia Rodrigo, de Céu a Rita Lee, usou da nostalgia a seu favor, conscientemente ou não.
O mesmo com o tal uivo do "Coração Cachorro", que já era um gritinho testado e aprovado por fãs dos cantor inglês.
Não é um problema a não ser que resolvam fazer um remake tão ruim quanto estes que assistimos no cinema - não estou preparado para uma música recauchutada que soe tão ruim como aquele "Robocop" do José Padilha, de 2014, por exemplo.
Você pode reclamar comigo aqui, no Instagram (@poantunes), no Twitter (também @poantunes) ou no TikTok (@poantunes, evidentemente).
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