Eu, você e o mundo todo deve um pedido de desculpas a Kenny G
Os jovens fãs do rapper Matuê talvez não saibam que, quando cantam o verso "faz o Kenny G", estão anunciando Kenneth Bruce Gorelick, um dos músicos mais bem-sucedidos de todos os tempos.
E também um dos artistas mais odiados de todos os tempos. Antes mesmo da existência das máquinas de ódio conhecidas como redes sociais.
Mas esse não é um papo para a geração Z. Talvez os millenials mais antigos ainda tenham memória daquela figura magricela, de nariz adunco, cabelos cacheados soltos e um saxofone soprano em mãos e aquelas notas alongadas que pareciam exigir um fôlego surreal.
São mais de 75 milhões de discos vendidos desde que a música "Songbird" bombou nos Estados Unidos, em 1986. Nos anos 90, Kenny G estava por todos os lados. Era uma presença quase insuportável, é importante dizer. Do elevador à rádio da madrugada. No táxi à cerimônia de encerramento da Copa do Mundo de Futebol de 1994 (vencida pelo Brasil, aliás).
Os críticos de jazz o detestavam porque ele nunca, nunquinha, seguiu qualquer tradição jazzística.
Em vez de romper com o mundo conhecia, Kenny G soprava seu saxofone até encontrar aquilo que mais lhe agradasse, uma melodia bonita, algo tocante, por mais brega e adoçado em excesso que fosse o resultado.
O filme "Listening to Kenny G" estreia hoje na HBO Max aqui para mudar um pouco as coisas. Comigo, já adianto, funcionou perfeitamente.
"As pessoas acham que toco desse jeito porque eu sabia que venderia muito bem. Gostaria de ser tão inteligente assim"
Diz Kenny G em dado momento do filme.
Dirigido por Penny Lane, o documentário é uma lição anti-ódio que vem bem a calhar nestes tempos de hate gratuito, principalmente na web.
A cada cena, o documentário desmistifica e, principalmente, humaniza a icônica figura tão popular nos anos 90. Dói quando você olha nos olhos de quem você odeia ou ridiculariza sem motivo genuino, não é?
A diretora e o Kenny G conversaram com este colunista em uma mesa redonda virtual na companhia de jornalistas da Croácia, Chile, Argentina, entre outros países.
Para começar, Penny Lane foi questionada se gostava da música de Kenny G. E a resposta, sincerona, foi um sonoro "não!". Pois é.
"Eu não estou tentando vingá-lo, de alguma maneira. Não quero convencer ninguém a se sentir diferente do que se sente. Eu mesma não amo a música do Kenny G, mas, ainda assim, estamos falando de uma pessoa, de arte feita por pessoas. Não seja um idiota com as pessoas que gostam de coisas que você não gosta. E não gostar de algo que outras pessoas gostam não transformam você em superior. Precisamos lembrar que são todos seres humanos."
Kenny G diz não conhecer a música de Matuê, mas questionou se poderia ganhar algum direito autoral com isso (se chegar algum email aí, Tuê, peço desculpas) e sente saudade do Brasil.
"Nos anos 90, eu visitava o Brasil frequentemente. Uma música minha, trilha sonora do filme "Tudo por Amor" [com Julia Roberts, lançado em 1991], fez muito sucesso. Mas a economia foi piorando e eu gastaria uma fortuna só para voar até aí."
E além de elogiar o público, algo de praxe, Kenny G ainda elogiou peculiar culinária local.
"Eu adorava ir aos restaurantes japoneses e perceber aquela mistura da comida japonesa com um toque bem brasileiro."
Eu não soube o que dizer. Afinal, desde a sua última visita, dos anos 90 para cá, as coisas escalaram a níveis surreais.
Perguntei o que o levou a aceitar a participação no documentário e quais foram as suas primeiras impressões. Neste momento, Kenny G deu uma aula.
"Para mim, foi uma oferta que me deixou lisonjeado. Alguém da HBO queria fazer um documentário sobre alguém da minha ideia e sobre a minha carreira? Eu ganharia uma exposição que não saberia medir. Eu sabia que deveira aceitar. As coisas agora não são como antes, certo? Com a força da rádio e televisão. Tudo gira em torno das redes sociais. Então, se algo assim pudesse levar minha música e minha história para mais pessoas, eu aceitaria."
Ele segue:
"Encontrei-me com a diretora Penny Lane e ela me disse que a ideia era conectar com pessoas que talvez não amassem tanto a minha música. Eu achei um conceito ótimo e fiquei agradecido."
A honestidade estabeleceu uma confiança entre diretora e entrevistado, como Penny Lane, cujo nome confirma que seus pais eram obviamente fanáticos pelos Beatles, contou na entrevista.
"Foi isso que nos aproximou. Eu falei que não amava a música dele, mas que também não odeio. Contei que tenho amigos que não podem ouvir quatro segundos de "Songbird" e já começam a ficar irritados. Isso funcionou. Só não é meu tipo de música, entende?"
No doc, você assistirá críticos comparando a música de Kenny G com algo pouco elogioso. Um deles diz que as músicas do norte-americano são uma espécie de "papel de parede" - como se fosse um detalhe, apenas. Mesmo assim, Penny Lane decidiu evitar comentários de puro ódio.
"Tem muito ódio direcionado para ele vindo de todo o mundo. Eu não queria incluir isso no meu filme. Era muito cruel. Não precisamos disso."
Mas Kenny, no fim das contas, não parece ligar muito para isso.
Como mostra o documentário, ele é um perfeccionista. Se quer jogar golfe, ele precisa ser bom. E realmente é, aliás. Ele valoriza o trabalho duro e o treino, treino, treino. Esperto, se tornou um dos primeiros investidores da marca Starbucks, cafeteria que é hit até hoje.
Passados 35 anos desde o seu surgimento, Kenny G sorri como alguém que venceu o ódio com o amor também recebido pelos fãs ao redor do mundo.
"O que me surpreendeu sobre Kenny G é como ele lida com a arte. Para ele, a música precisa preencher três requisitos: ser bonita de ouvir, ser tecnicamente correta e deixá-lo feliz. Para a maioria dos artistas, fazer arte requer muito mais. É isso que faz dele tão amado e tão odiado."
Atualmente, ele não está nem aí caso você goste de ouvir suas canções para momentos de intimidade (se é que você me entende) ou se tem calafrios só de pensar na versão instrumental dele para "My Heart Will Go On", o clássico da trilha sonora do filme Titanic.
"Sempre recebi tantas respostas positivas sobre a minha música que quando ouço algo negativo, eu não ligo muito porque já tenho estes elogios. E eu sei, no fundo, que tenho trabalhado duro para fazer o que eu faço. E sou muito objetivo com isso. Se ouço meu saxofone e não algo não está bom, eu paro, vou praticar mais até realmente deixar da melhor forma possível."
Por fim, Kenny foi questionado sobre o que descobriu respeito de si mesmo com o documentário.
"Eu me conheço razoavelmente bem. Mas foi interessante ouvir os críticos falando. Porque eu já li aquelas palavras, mas nunca tinha assistido eles falando. Não me afetaram, mas eu consegui entendê-los. Isso eu aprendi. Eu sempre achei que cada um tem o direito de dizer o que quiser, inclusive algo mal ou desagradável, mas eu não sou obrigado a sentar quieto e ouvir. Nem significa que eu preciso levar isso para o meu coração."
Por fim, ele ensina o desprendimento completo. Uma dica boa para quem for zen o suficiente (ou tiver a conta bancária quase ou tão abastecida como a de Kenny G).
"Tenho completo controle sobre mim. E controlo como eu lido com essas crueldades. Eu posso escolher ficar bravo com isso ou deixar isso ir embora, apenas. É melhor para deixar para lá, porque não há nada que eu possa fazer, não é?"
Faz sentido, não faz?
De uma forma bastante honesta, "Listening to Kenny G" muda a perspectiva da relação entre a crítica à arte e o ódio gratuito.
Eu, você, todo mundo deve um pedido de desculpas a Kenny G.
Você pode reclamar comigo aqui, no Instagram (@poantunes), no Twitter (também @poantunes) ou no TikTok (@poantunes, evidentemente).
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