Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A Marvel entrega tudo no entretenimento, e pede apenas sua alma em troca
A meritocracia foi longe demais. Já não bastasse permear todos os nossos fracassos profissionais e afetivos, ela agora quer aporrinhar no ramo do entretenimento também. Ao meu ver, entretenimento raiz é o que faz o tempo passar mais rápido sem que eu precise ser parte do esforço. Se eu tive que dar duro pra consumir uma obra, então não foi entretenimento o que aconteceu ali, foi trabalho.
É por isso que a Marvel deixou de ser diversão e se tornou ocupação. Não dá pra simplesmente chegar agora e assistir esse lançamento do cinema que tá todo mundo falando, porque antes você precisa assistir 23 filmes e 17 séries (pelo menos até o fechamento dessa coluna) para provar que é digno do hype.
E antes fosse só isso, porque além de tudo, Marvel não é só sobre o que você vê, mas também sobre o que você não vê. Então para além dos filmes e séries, você precisa consumir mais incontáveis análises do Youtube, e assim ter acesso a todos os easter eggs e mensagens subliminares que você deixou passar, o que basicamente faz com que cada filme já venha acoplado a um dever de casa.
Isso sem falar na barbaridade que é incluir uma cena pós crédito. Atividade eletiva deveria ser opcional, mas eles tiram de nós esse poder de escolha quando decidem incluir ali uma cena que vai influenciar no plot geral. Então lá vamos nós ficar de castigo depois de 3 horas de filme, assistindo 15 minutos de tela preta com letrinhas miúdas, porque pra receber a mensagem completa não basta pagar o ingresso, você precisa provar que merece.
E aí você deve estar pensando "poxa, se não quer ter trabalho, então não vê". É caro leitor, essa é sim uma opção, mas é também uma alternativa bastante cruel, porque você é condenado à exclusão do debate público. Basta surgir um Homem Aranha novo, ou um Senhor Estranho desses, que todas as pautas se viram pra isso. E hype é uma droga pesadíssima, das que criam dependência e prejudicam tudo a sua volta. Foi o hype que me fez perder trabalho nas segundas de manhã porque precisava debater o Game of Thrones da noite anterior, foi hype que me condenou a repetir a música da "batatinha frita 1, 2, 3" compulsivamente e decorar paródias de funk com a música tema de "La Casa de Papel". O hype agudo é tão grave, que me fez assistir ao Arthur Aguiar vencer o BBB, imagens das quais nunca me recuperarei. É um vício extremamente nocivo, pra dizer o mínimo. Como mostra essa esquete do Porta dos Fundos.
E é por isso que, em protesto, eu joguei pro alto. Parei com os filmes da Marvel, e desde então eu tenho conseguido pausar para cheirar as rosas pelo caminho, e sentir os raios de sol esquentarem minha pele pela manhã. Eu fui agraciada com o presente do tempo, e nunca mais olhei pra trás - ou é o que eu espero que tenha acontecido em algum multiverso da minha existência, porque na prática só serviu pra eu poder ler spoiler no Twitter sem culpa, e rir de 65% dos memes do Homem Aranha, que foi o que deu pra entender.
*Gabriela Niskier é roteirista do Porta dos Fundos e ex-fã da Marvel. No Instagram: @gabrielaniskier
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