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Renata Corrêa

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

I <3 mulheres difíceis

Michaela Coel em cena de "I May Destroy You", série da HBO - Divulgação
Michaela Coel em cena de "I May Destroy You", série da HBO Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

05/04/2021 12h53

Em 2014 foi lançado o livro "Homens Difíceis", que mapeava a era de ouro da TV fechada, com séries brilhantes do final dos anos 1990 ao início dos anos 2000. Estavam lá Walter White ("Breaking Bad"), Tony Soprano ("Família Soprano") e Don Draper ("Mad Men").

O livro foi um sucesso. Roteiristas e amantes da cultura pop ficaram obcecados pela obra, que ligava o ocaso do homem branco norte-americano com os personagens retratados em tela. Elevando o gênero policial e de ação a um status de arte, "Sopranos" e "Breaking Bad" traçaram a grande metáfora do que era ser homem num ocidente em colapso, sendo eles mesmos agentes e vítimas dessa decadência social e moral. Já Don Draper, o antepassado direto dos dois na árvore genealógica da masculinidade, era o retrato do auge antes da inevitável queda.

Todos esses homens tinham problemas graves de relacionamento com esposas, amantes e filhos. A incapacidade de conexão emocional era uma das grandes características de suas personalidades, e a ausência de empatia por outros humanos construía trajetórias de assassinato, mentira, abandono e violência. Qualquer roteirista nesse período teve que ouvir produtores que se achavam espertos perguntando: onde está o "misbehaviour"?

Meus olhos reviravam, afinal, o anglicismo nada mais era do que uma redução bem fuleira da boa e velha falha trágica, batida em manuais de roteiro desde que um pobre diabo resolveu colocar uma história no papel para ser filmada. A indústria brasileira estava obcecada pelo seu homem difícil e queria o seu "Breaking Bad" a qualquer custo —o que nunca aconteceu, com a graça do Senhor Jesus Cristo. Mas isso é assunto para outra coluna.

Já as mulheres que se comportavam mal não ganharam um livro de tanto destaque. No mesmo período, com relativo sucesso e alguns Emmys, a série "Weeds" trazia uma mãe de família viúva que começava a vender maconha para sustentar os filhos. Apesar da protagonista Nancy Botwin ser perseguida por traficantes, polícia, ter que transar contra a vontade para se safar, perder amigos e viver em fuga, a série competia na categoria humor.

Nancy era uma traficante barra-pesada, mas também era linda, sexy, boa mãe e engraçada. Uma pessoa nada difícil. Ao contrário de seus companheiros do mesmo período, "Weeds" não foi considerada genial nem está nos manuais de roteiro, apesar da fórmula da viúva sonsa e desavisada de um negócio criminoso se repetir à exaustão.

Recentemente, a crítica especializada decretou o fim da era dos homens difíceis e inaugurou a era das mulheres difíceis. Lançada em 2016, "Fleabag" fez uma carreira lenta, porém sólida, no coração do público, varrendo premiações e colocando sua criadora, Phoebe Waller Bridge, em destaque. Alguns anos antes, uma outra garota difícil se tornou a queridinha quando o assunto eram mulheres complexas e cheias de mau comportamento: ame ou odeie, Lena Dunham criou um espaço para que garotas detestáveis pudessem protagonizar suas histórias.

Em 2021 a era das mulheres difíceis parece estar se consagrando com "I May Destroy You": série em que Michaela Coel cria uma antifábula sobre violência sexual, raça e gênero. Todas essas séries são classificadas como dramédias, e estão na grade de programação dos streamings como produções de 30 minutos. os homens difíceis têm o dobro de tempo de duração e concorrem na categoria drama.

O que me chama a atenção na queda dos homens difíceis para a ascensão das mulheres difíceis é que eles são difíceis porque matam, estupram, mentem, são psicopatas fora da lei e que outros personagens devem ficar longe de seu caminho se quiserem sobreviver. Já as mulheres difíceis, que a crítica rotula de complicadas, fora da curva, impossíveis e detestáveis, estão apenas traumatizadas demais pelo fato de serem mulheres no mundo —sendo elas violadas, maltratadas e ignoradas por homens que até parecem legais.

Ser uma mulher difícil é apenas não estar se dobrando à violência cotidiana e tentando viver a própria vida. O que é o charme de um homem careca e feio que enforca o próprio sobrinho, como Tony Soprano, diante da antipatia que sentimos por uma mulher gorda que é chata com as amigas como Hannah Horvarth? Essa maneira de amar ou odiar personagens está escondida dentro do nosso coração. Um homem quebrado, por pior que seja o seu comportamento, é alguém que deve ser consertado, salvo, perdoado; uma mulher quebrada não pode ser resgatada por nenhum bote salva vidas.

Alguns teóricos e estudiosos separam a jornada do herói e a jornada da heroína. Nos personagens masculinos, a narrativa clássica o impulsionaria a viajar por um mundo externo e desconhecido; nas personagens mulheres, a viagem seria interna de autodescoberta. Um clichê sexista que, felizmente, está caindo por terra, mas ainda tem defensores. E podemos observar esse clichê se repetindo tantas vezes que é até fácil acreditar que ele é verdadeiro —o homem com a arma na mão, e a mulher com a mãozinha na consciência.

Observar a ficção que produzimos é observar também o nosso tempo. O que uma mulher precisa fazer para ser considerada difícil ainda é muito pouco diante do que um homem precisa fazer para ser considerado levemente controverso, e as histórias jogam luz sobre essas diferenças. Eu tenho a esperança de que também joguem luz sobre nossas semelhanças. Ainda há muito espaço para mulheres difíceis nos iluminarem com as suas sombras.