Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
'Bela Vingança', Bela Decepção
Uma manada de búfalos corre por um prado verde iluminado pelo sol de inverno. Eles são bonitos, sua pelagem brilhante e marrom parece formar uma única onda, um único corpo. A força daquele movimento me encantou —coletivamente eles pareciam invencíveis. Nenhum predador poderia parar aquela marcha. Exceto eles mesmos: o prado, que parecia infinito, se interrompe num abismo, e os búfalos do início da fila não conseguiram parar, se jogando para morte.
Os que vinham atrás, acreditando na decisão de quem estava na frente, se jogaram também, fazendo uma cascata desesperada de corpos girando pelo ar sem entender o que aconteceu. Um dos búfalos percebe, e tenta dar ré, mas é tarde demais. Ao não seguir com a manada ele acaba sendo atropelado por quem não percebeu a queda ali na frente.
Vi essa cena diversas vezes no Discovery Channel quando era adolescente e na vida eu me senti búfalo em muitos momentos. Já estive na frente e me joguei no abismo, incentivando quem estava atrás de mim; já estive atrás e me joguei no abismo, acreditando em quem estava na frente. Na maioria das vezes sou o búfalo que freia, me perguntando:
Gente, é sério? Vocês gostam mesmo de Nutella? Tem gosto de gordura hidrogenada com açúcar refinado. Tá, esses óculos amarelos do Bono são legais e ele parece uma boa pessoa, mas é razoável continuar sendo fã de U2?
E assim minha vida seguiu chocada com o sucesso de coisas como chope de vinho, cama de pallet, Jurerê Internacional, Joaquin Phoenix, influenciador fitness e a fonte comic sans.
No geral é fácil sustentar uma opinião impopular na internet, e eu sou muito boa nisso. Já fui cancelada por causa de mamão (a fruta), o filme "Coringa", e por não gostar de homem hétero com camiseta de time. Tirando quando você mexe com o gabinete do ódio, os haters são como aves migratórias com problemas de atenção —te odeiam por uma tarde, dizem que vão matar a sua família e logo depois voam para pousar no galho de outra pessoa infeliz.
Porém, o conflito é mais grave quando você se decepciona e não gosta de algo que você supostamente deveria gostar; algo que pelo seu perfil os seus amigos acham que você vai gostar, que sua mãe recomendou e que, para além disso, algo que não apenas é o seu número, mas também o símbolo de algo maior que você.
Uma ideologia, uma crença social, moral e política.
E isso me aconteceu. Eu não gostei de "Bela Vingança". Veja bem, o filme foi indicado ao Oscar de melhor roteiro original, e ganhou. Emerald Fennell, acumulou marcos históricos: primeira mulher a ser indicada por um filme de estreia na direção, ela rodou em apenas VINTE E TRÊS DIAS, GRÁVIDA NO TERCEIRO TRIMESTRE e o bebê nasceu apenas alguns dias após o fim das filmagens.
Era tudo que eu precisava assistir. Uma super-heroína do mercado audiovisual, feminista, da qual eu sou fã pelo trabalho em "Killing Eve" e "The Crown", escreveu e dirigiu um filme sobre uma jovem que se vinga de homens abusadores. E foi por isso mesmo que demorei um tempo para admitir para mim mesma que achava o filme ruim.
Praticamente todos os amigos que eu amo me recomendaram com ênfase. Frases usavam as palavras "inspirador", "chocante", "surpreendente", "revolucionário", "um tapa na cara" mas principalmente "VOCÊ VAI AMAR, VEJA ESSE FILME AGORA". E eu vi. Na primeira vez eu achei que era o caso de frustração de um excesso de expectativa, e não satisfeita, eu vi de novo, afinal se eu não vou gostar justamente desse filme eu preciso saber o porquê.
E a partir daqui contém spoilers, então se você é uma pessoa fresca e não comprava a TiTiTi para saber o que iria acontecer na novela é bom parar por aqui.
"Bela Vingança" nos apresenta Cassie, uma jovem linda, loura e triste, interpretada pela atriz Carey Mulligan. De dia, ela trabalha em uma cafeteria e à noite ela vai a bares e festas, finge que está bêbada e vulnerável para se vingar de homens abusadores que se aproveitam da situação.
Confesso que me diverti muito com o pavor da primeira vítima, encurralada pela perigosa Cassie. Na cena seguinte, ela caminha triunfante pela rua com suas pernas sangrentas, numa referência interessante aos filmes de rape revenge dos anos 1970 (subgênero do exploitation onde as mocinhas se vingam da violência sexual de forma espetacular e gráfica).
Logo descobrimos que o que tem nas pernas de Cassie não é sangue, mas apenas o molho do sanduíche que ela está comendo. Logo ali percebi como aquela personagem era na verdade inofensiva, e que a vingança do título era mais um exercício estético de autora e personagem do que a tentativa da criação de um universo ficcional alternativo ao que vivemos (e taí uma coisa que eu adoro).
Cassie caminha pelo mundo sem conseguir seguir em frente, pois os homens que estupraram sua amiga e provocaram seu suicídio continuam impunes. Largou a faculdade, vive uma vida abaixo do que seus pais esperavam para ela, uma jovem promissora (como a "Promising Young Woman" do título original).
E, de forma coerente, sua vingança se completa apenas quando ela morre nas mãos dos mesmos algozes, num anticlímax frustrante. Na vida real as mulheres já morrem. Já são assassinadas de forma cruel. No cinema os diretores homens já usam os corpos de mulheres mortas como recurso para provocar desejo, repulsa, compadecimento e choque.
Não há absolutamente nada de inovador em mais um corpo de uma mulher morta, mesmo que isso resulte em uma espécie de justiça.
O rape revenge nos anos 1970 correu para que "Bela Vingança" pudesse engatinhar.
Emerald tem outra opinião. Em diversas entrevistas, disse que escolheu a tragédia pois queria ser fiel à realidade. Bom, se o filme fosse fiel à realidade, Cassie teria morrido e seus agressores continuariam impunes. A escolha é um meio do caminho onde a estetização do assassinato de uma mulher aliado a uma estética pop e sensual parece muito com algo que um homem faria com o corpo de uma mulher em tela. E isso não me ofendeu como mulher, mas me deixou entediada como criadora. Sério? É isso? De novo?
Sinto que "Bela Vingança" reapresenta o feminismo, agora reembalado e remixado pela indústria de Hollywood de uma maneira mais palatável, onde uma gatinha vestida de enfermeira é sufocada embaixo de um quarterback e ficamos satisfeitos com essa solução: ela foi longe demais, ela ultrapassou alguns limites que não deveriam ser ultrapassados, e mais, numa perspectiva liberal e capitalista que nos vende a ideia que mulheres podem ESCOLHER qualquer coisa que nos acontece, Cassie escolhe morrer.
Talvez eu seja apenas uma moça latino americana sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vinda do interior e ache essa perspectiva eurocêntrica de Emerald Fennell conservadora, entediante e pueril, pois onde eu vivo os malvados já ganham e mulheres com sede de justiça já são assassinadas. Justiça poética não é mais suficiente.
Justiça ao meu ver seria viver —e essa, uma escolha bem mais interessante: na vida e na ficção.
Claro que existe a possibilidade de Emerald Fennell ter feito uma grande pegadinha. Ao ter escrito e dirigido um filme exatamente para os homens assistindo se acharem muito inteligentes, descobrindo como o machismo pode ser cruel e fazendo os brancos de meia-idade da academia se roerem de remorso votando compulsivamente para que o filme ganhasse e sua culpa fosse expiada ao reprovar o comportamento dos algozes de Cassie.
Nesse caso eu me desculpo por ser um búfalo de péssimo humor, destacado da manada e perdido a alegria potente de participar de uma unanimidade.
Para saber mais coisas que todo mundo gosta e eu não, você pode me achar no Instagram ou no Twitter.
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