Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Não existe feminismo negacionista
Vivemos tempos onde o óbvio precisa ser dito. E isso cansa, pois precisamos repetir o óbvio a cada vez que a mentira, o absurdo e a confusão se apresentam.
A verdade nunca faz uma entrada triunfal. Ela apenas é.
O absurdo é espetacular, brilhante. A banda para de tocar quando ele entra no salão. A verdade fica atônita na pista de dança se perguntando onde está a música.
De repente estava eu, vendo na CPI, a médica defensora do uso ineficaz e perigoso de hidroxicloroquina para tratamento de Covid-19. É impossível mensurar a quantidade de pessoas que morreram por acreditar nela; é impossível mensurar o tamanho do estrago que ela fez na saúde pública ao integrar um gabinete paralelo que deliberava inclusive sobre a mudança na bula de uma medicação que podia ser fatal para doentes já debilitados. Seu nome é Nise Yamaguchi.
Nise usou de expedientes clássicos de quem tem culpa no cartório para se safar. Tergiversou. Não respondeu às perguntas que os senadores fizeram a respeito de sua atuação. Se vitimizou. Usou o discurso de autoridade ao fazer uma longa fala sobre o seu currículo na medicina. Mas basicamente, mentiu. Mentiu muito. E usou a CPI para continuar fazendo propaganda de práticas sem comprovação científica que podem ainda levar milhares de pessoas à morte.
Eu ainda não estava refeita do choque de assistir um espetáculo tão tétrico quando algumas senadoras pediram a palavra para defender que Nise Yamaguchi não fosse interrompida pelos senadores homens. Que a deixassem falar. Essa reivindicação logo ganhou as redes sociais. Algumas influenciadoras e celebridades estavam muito preocupadas com a falta de gentileza e com as interrupções as quais Nise Yamaguchi foi submetida por machismo.
É lógico que podemos ler todo o depoimento de Nise à CPI pela questão de gênero. É impossível não enxergar o mundo dessa maneira quando se percebe que a estrutura da sociedade é feita para beneficiar homens brancos. Mas é importante lembrar também que o feminismo é uma ideologia anti status quo, de esquerda, que tem como princípio fundador não apenas uma suposta igualdade de gêneros, mas principalmente a justiça.
E o que eu quero dizer com isso?
A pandemia de coronavírus é particularmente devastadora para meninas e mulheres. A crise social, econômica e sanitária está tirando meninas pobres da escola que agora cuidam dos afazeres domésticos; as mulheres mais velhas foram expulsas do mercado de trabalho e se arriscam em atividades informais, sem segurança, sem direitos. Os homens negros e pobres são os que mais morrem, deixando um rastro de viúvas e mães sem filhos. A ONU estima que os atrasos no avanço da igualdade de gênero pós pandemia podem estagnar, ou até mesmo retroceder trinta anos.
Quando alguém defende Nise Yamaguchi na verdade está invisibilizando as mulheres mais vulneráveis que foram vítimas do coronavírus: seja morrendo ou tendo seus sonhos esmagados.
É impossível ser feminista e não se posicionar. É impossível ser feminista e negacionista. E usar retórica do feminismo para defender neutralidade política se chama desonestidade intelectual.
O feminismo não é uma bolsa cara que você ostenta no Instagram; não dá para comprar princípios numa loja em Paris. É algo que você desenvolve com a sua consciência, compaixão e se educando de forma permanente.
Nise Yamaguchi não precisa de defesa contra os homens malvados que a interrogaram na CPI como convidada. Ela já tem um bom advogado, a proteção de um governo genocida e todos os privilégios de uma mulher rica, com faculdade de medicina e acesso direto ao poder que decide quem vive e quem morre.
Esse é o óbvio que não pode ser esquecido.
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