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Renata Corrêa

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Cabul é aqui

Colunista do UOL

17/08/2021 08h26

Ontem o mundo foi varrido por imagens do Afeganistão sendo tomado pela milícia fundamentalista Talebã. As cenas são dramáticas. A capital Cabul, invadida por homens fortemente armados, engarrafamentos gigantescos de famílias tentando deixar o país, aeroportos apinhados de gente tentando fugir do regime, morrendo e sendo deixadas para trás.

Quando os milicianos entraram em Cabul professoras se despediram das alunas, pois a educação e o trabalho remunerado agora estavam automaticamente proibidos. Homens gritavam para que mulheres fossem para casa vestir a burca, ou seriam espancadas e mortas. Jovens trabalhadoras e estudantes escondiam as provas de seus crimes: instrumentos de trabalho, diplomas, certificados. Sem separação alguma entre o Estado e a religião, meninas e mulheres estão submetidas a uma interpretação fundamentalista e extremamente violenta do Alcorão.

Parece uma realidade muito distante de nós, mulheres brasileiras. Mas a verdade é que o fundamentalismo e os perigos de um Estado regulado pela religião nos ameaçam e já geram consequências graves para as nossas vidas hoje.

Damares Alves, a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do Governo Bolsonaro vem dedicando sua gestão a retirada dos direitos conquistados a duras penas pelos movimentos sociais. Base forte ideológica do governo, Damares não separa sua atuação religiosa da sua atuação política. Em setembro do ano passado, demonstrando uma absoluta falta de respeito pelo cargo que ocupa e uma falta de humanidade brutal, a ministra usou recursos de sua pasta para tentar impedir que uma menina de dez anos interrompesse uma gravidez fruto de um estupro.

No Brasil existem três casos onde o abortamento é legal: em caso de risco de vida para mãe, em caso de feto diagnosticado com enfermidade incompatível com a vida, e em casos de estupro. Damares foi contra a lei para agir de acordo com convicções íntimas a respeito do que deveria ser feito, a despeito do desejo da criança e da família que ela tem como dever proteger.

Desde 2019, um terço dos recursos destinados às mulheres no Brasil deixou de ser usado pelo Governo Bolsonaro. O Governo Federal deixou de aplicar 400 milhões de reais que poderiam estar salvando a vida de mulheres e crianças na pandemia. O levantamento exclusivo da Revista Azmina, mostra que o dinheiro voltou para o caixa único da união, possivelmente sendo usado para agradar o Centrão que sustenta a permanência de Bolsonaro no cargo.

Essa é só a ponta de um novelo de maldades da gestão Bolsonaro contra as mulheres brasileiras, especialmente as mais vulneráveis. Eu poderia simplesmente fazer uma lista com títulos como "Governo amplia o acesso civil às armas de fogo no país onde 51% dos feminicídios é cometido à bala", "Empregadas Domésticas perdem direitos com a reforma trabalhista", "Congresso quer endurecer leis anti-aborto", "Governo Federal desmonta a Casa da mulher brasileira", "Bolsonaro propõe corte de verbas de creches das Prefeituras".

Mas para além do concreto existe o simbólico. Nós somos a "fraquejada", a mão de obra descartável quando engravidamos, as ameaçadas de estupro, tudo isso dito pelo presidente, frases encontradas em qualquer Google, sem o menor esforço de pesquisa.

Nada disso é coincidência. Uma minoria atacada frontalmente é um ato político pensado, estratégico que tem como objetivo enfraquecer e desesperançar indivíduos, para que mais vulneráveis e sem alternativas se tornem dóceis e aceitem ser mão de obra barata, aceitem o tapa, aceitem a falta de autonomia. Uma massa de mulheres vulneráveis, sem segurança alimentar para si e para os seus filhos, sem acesso à moradia e emprego e ameaçadas por violência institucional e política não é exclusividade do Afeganistão. É o Brasil passando diante dos nossos olhos.

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Infelizmente hoje não deu pra ser feliz. Você pode encontrar minha indignação no Twitter ou no Instagram.