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Renata Corrêa

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Lugar de Falha

Colunista do Uol

30/08/2021 04h00Atualizada em 30/08/2021 12h30

A coluna anterior foi um texto sobre a série "The White Lotus" (HBO Max). Em debate com outros profissionais de roteiro, outras perspectivas sobre a série emergiram, principalmente de autores negros e da comunidade LGBTQI+.

Para trazer o debate para esse espaço, convidei Maíra Oliveira, presidente da ABRA para dar a sua contribuição. A seguir, "Lugar de Falha", brilhante reflexão sobre a autocrítica branca como estratégia de manutenção dos privilégios.

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A necessidade de se posicionar frente a um mundo que urge por mudanças sociais cria anomalias que nos tonteiam. Em dúvida precisamos ver, ler, ouvir algumas coisas mais de uma vez para entender as voltas que os 'posicionados' dão na retórica, para na verdade, de alguma forma manter tudo como está no seu lugar sem ficar feio na fita. Eu não sei vocês, mas isso me deixa num estado de constante vigilância e questionamento que as contas que pago na terapia (ou em compras online) não negam: não faz nada bem. Mas ao mesmo tempo, esse nó que fica na garganta não me deixa engolir certas coisas e assim eu tenho oportunidade de cuspir ao invés de descer goela abaixo as tais anomalias que falei no começo? quer ver uma? Autocrítica do branco.

Em casos como da cantora que afirma que "branco pode cantar samba" antes de uma performance epistemicída, ou da autora que justifica passagens racistas em sua novela de época como 'equívocos' - pois, pasmem, escrito em 2018-, o que fica de comum é o lugar de falha: direito a errar, se desculpar e seguir sob os holofotes. E o que em primeiro lugar as fez falhar? o privilégio. A branquitude é uma doença.

Essas últimas semanas a crítica explodiu com uma série que jurava juradinho que abordaria esse privilégio: "The White Lotus" da HBO. E sabe aquele nó na minha garganta? Então.

Seguindo o manual, a cena de abertura da série é uma isca e logo sabemos que alguém vai morrer. Mas o que acompanhamos a seguir - se você é daqueles que como eu está com o desconfiômetro calibrado pela dureza da vida - é que na verdade há muitas outras mortes.

Anunciado como uma sátira, a série de seis episódios segue os clientes de um resort havaiano e a equipe que os atende. Entre eles Steve e Nicole, um casal viajando com os filhos Quinn e Olivia, e Paula (Britanny O'Grady) , a amiga negra de Olivia. Shane e Rachel são recém-casados em lua de mel. Tanya, uma rica loira e afetada, em luto pela morte da mãe. Armond, o gerente do resort, gay e branco, é quem os recebe, ao lado de Belinda (Natasha Rothwell), uma massagista negra, e Lani (Jolene Purdy), uma estagiária, havaiana nativa. Está setado o cenário, pronto a dizer algo sobre a indústria de turismo e privilégio. Mas apesar da bela fotografia e da atuação espetacular de um elenco afinado, a série não diz absolutamente nada de novo e acaba por reafirmar o lugar de quem pode falar sobre tudo como protagonista, surfando na onda das pautas sociais, sem jamais abrir mão daquilo que diz criticar. E como The White Lotus faz isso?

Paula, Belinda, Lani, Kai (funcionário do resort por quem Paula se apaixona, interpretado pelo ator Kekoa Scott Kekumano), são contrastes para os personagens brancos, meros adereços que servem como receptáculos para o trauma e o fetiche deles. Enquanto Paula é usada por Olivia - a desiludida com o patriarcado - para satisfazer seu próprio desejo de ser o "outro", tentando se distanciar da branquitude que herdou. Belinda, em sua amabilidade, é usada por Tanya, que a suga para sua dor. No fim, exaurida pelo vampirismo de Tanya, Belinda não tem mais nada, exceto um sorriso cansado que ela dá para cumprimentar o próximo grupo que chega ao resort. Kai é preso, enquanto os riquíssimos Steve e Nicole discutem, durante um jantar luxuoso, o quanto a experiência de quase roubo foi catártica e exótica. E Lani? Bem, terminamos a série não sabemos o que aconteceu com ela, sua aparição serve apenas como ponto de trama para expandir o caráter de Armond. Armond, por sua vez, por ser um serviçal, gay, na lógica da branquitude é "negro de mais" para sobreviver ao final dessa história, onde apenas os brancos se dão bem, e acaba morto após um momento escatológico - a única forma de protesto possivel.

"The White Lotus" relega a esses personagens não brancos a uma morte lenta, em prol de um final anticlimático. Presos em um inferno perpétuo, escrito e criado por roteiristas brancos que não estão dispostos a se divorciar dos sistemas que o centralizam na narrativa da indústria do audiovisual. A série reivindica o direito de fornecer uma crítica incisiva do privilégio, mas o show nivela e apaga a história havaiana e seus personagens racializados.

No final, "The White Lotus" não agrega nada ao debate racial, exceto que aqueles que se beneficiam do privilégio branco, mesmo que reconheçam que existe, muito raramente estão dispostos a se desfazer dele, tal qual a supracitada cantora e autora de novela. O espetáculo acaba sendo um exercício inútil de auto-masturbação, que pode ser ligeiramente agradável de assistir para os desatentos, mas ainda assim inútil. Dessa forma, ao reproduzir as mesmas violências, os mesmo estereótipos e apresentar pessoas não brancas como produtos consumíveis, sem histórias pregressa ou nuances, The White Lotus mira na crítica satírica e acerta no terror, ou simplesmente no racismo. Quer dizer, mais um tempo de vigilância e questionamento renovado. E a terapia, bom... essa ainda tá na minha conta.

Maíra Oliveira é presidente da ABRA - Associação Brasileira de Autores Roteiristas, autora e atualmente é roteirista-chefe na Disney+. Para acompanhar Maíra em suas redes sociais clique aqui.